“Se você escolhe ficar neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor.”
A frase, atribuída a Desmond Tutu, um dos principais líderes da luta contra o Apartheid na África do Sul, laureado com um Nobel da Paz em 1984, vai ao encontro de outras citações importantes da luta contra o racismo, colocando a neutralidade no centro da narrativa.
Angela Davis proferiu aquela que talvez seja a faça mais emblemática:
“Não basta ser racista; é preciso ser antirracista”.
No centro das afirmações de Tutu e de Davis está a urgência de ação incisiva contra opressões. Especialmente dos que podemos chamar de neutros: aqueles que, em princípio, não fazem parte do grupo opressor, nem do grupo oprimido, não tendo, na superfície, interesse direto na luta.
Existe mesmo neutralidade?
Embora eventualmente não estejamos envolvidos diretamente, a luta é de todos. Afinal, fazemos parte do mesmo tecido social. Somos impactos pelos duelos de poder existentes. O encaixe pessoal na normatividade pode nos beneficiar, estejamos cientes disso ou não. O desencaixe sem luta não faz com que o problema deixe de existir, e muitas vezes somos levados a concordar com o próprio modelo de viver que nos subjuga.
Somos, portanto, agentes da propagação de um constante entrelace de estruturas de poder que não se resumem ao racismo. Conflitos de orientação sexual, gênero, território, classe, nível educacional e tantos outros se chocam no dia-a-dia, sendo mais ou menos visíveis de acordo com as circunstâncias, com a faísca que escancara o desequilíbrio.
Ainda assim, o fato de não haver neutralidade do ponto de vista relação com uma certa causa – somos parte de um todo e vivemos os ônus e os bônus da convivência em sociedade – não se transforma automaticamente em defesa dos menos favorecidos. Vocalizar ações depende de um cálculo que todos nós fazemos instintivamente: afinal, em que ponto a vergonha supera o medo?
Vergonha x Medo: superando a neutralidade
O que leva alguém a erguer bandeira e se engajar numa luta?
Uma determinada luta é tão mais importante para uma pessoa quanto mais impactante e incômodo for o motivo. A isso chamo de “vergonha”. Quanta vergonha algo me causa?
Ao mesmo tempo, avaliamos outros riscos. Risco de perder o emprego, de ter sua integridade física ameaçada, de ter a saúde comprometida. Funcionários tendem a não reportar abusos graves por medo de perder o emprego; comunidades se calam diante da violência da milícia por medo da morte; certos nichos religiosos progressistas tendem a manter opiniões para si por medo de rejeição.
É quando a vergonha, quando o status quo nos é insuportável, supera o medo que nos tornamos parte ativa de uma causa. E esta equação vergonha x medo tem cunho meramente individual. Por esta razão, neutros não devem ser obrigados a lutar. Cada um tem suas batalhas, seus incentivos, seus riscos.
O chamado à lutar não pode, e nem deve, obrigar alguém a se insurgir. Os que assim agem, além de deturpar a mensagem de conscientização de Tutu e Davis, sabem que pressão popular é fundamental, que lutas ganham relevância e visibilidade quanto maior for o contingente engajado.
Mas este equilíbrio entre chamada à ação e a culpabilização dos moderados é tênue. Se feito sem respeito à individualidade, sem elevar a conscientização sobre a realidade que é imposta, pode provocar redução do clamor das causas, por gerar antipatia.
A via fácil das redes sociais
Os esforços de uma causa encontraram um concorrente dentro dos meios de divulgação via redes sociais. Fundamentais para a propagação da importância de uma causa, ao mesmo tempo criou uma alternativa de envolvimento, quase nada efetiva e que despedaça o esforço real: a fala vazia de apoio.
Assim, pessoas se declaram apoio aos movimentos, participam de desafios em prol de algo… mas nada efetivamente muda. É um apoio que serve como apaziguador de culpa interna. Temos um desejo de sermos reconhecidos por causas nobres, nos até sentimos compelidos a participar, mas a mudança real não ocorre. Faz parte de um faz-de-conta em que a pessoa pode deitar à noite com a consciência de estar colaborando para um mundo melhor, um story do Instagram de cada vez.
Opressão estruturada
Um dos pontos centrais das lutas por direitos se dá pelo regramento jurídico moderno dentro de um Estado democrático de Direito. Ao contrário do que se via há algumas décadas, os textos de leis não mais formalizam o preconceito explicitamente. Deu-se lugar a um outro tipo de formalização do preconceito: o estruturado.
Neste ambiente, há uma dificuldade de apontar interferência direta. Afinal, às letras da lei, todos são iguais. (embora, como escreveu George Orwell (1903-1950) em “A revolução dos bichos”, somos todos iguais, mas alguns são mais iguais que os outros) Assim, sedimentou-se uma estrutura de opressão ainda mais poderosa, porque de combate difuso. A batalha sai do campo estritamente legal para o do convencimento, da conscientização, e cujos desdobramentos podem parecer exagero a quem de fora. Além disso, é confortável fazer de conta que falhas civilizatórias graves não existem na sociedade. Com isso, no distanciamento da maioria e na opressão silenciosa, o perigo se enraizou.
O inimigo, portanto, passou a não ser um ente específico – ainda que vejamos o renascimento de ideais nefastos de intolerância organizada, inclusive alcançado poder político –, mas sim o próprio sistema no qual estamos inseridos. Não existe um Mágico de Oz operando o maquinário numa sala; existe um sistema que opera com regras implícitas, que beneficiam uma parcela que não é a mais numerosa, mas é a mais poderosa.
A luta passou a ser, sobretudo, de narrativas.
Como isso impacta o Direito?
O Direito, por sua vez, não faz distinções entre sua população. E nem pode. Ao mesmo tempo, sua engrenagem reflete a moral de sua localidade, e os preceitos dos que fazem parte de sua atividade. O Direito não apenas é agente de mudança de regulações sociais, mas é também resultado da moral pública.
Em 2015 foi lançado um livro que solidificou o entendimento do preconceito jurídico. “Unfair: The New Science of Criminal Injustice” (2015), de Adam Benforado, se utiliza de técnicas de psicologia e neurociência para mostrar, baseado em dados reais, que agentes da justiça, como policiais, jurados e juízes, se guiam mais por intuições que por fatos para analisar e fazer julgamentos. É este o poder de uma modelagem social construída por séculos. Romper com algo tão sedimento não é possível apenas com textos de equidade.
Por isso leis com punições mais severas a racismo e homofobia, bem como feminicídio e outras variantes, são necessárias. Se a igualdade existe no texto da Lei, mas não existe no exercício dos julgamentos, é preciso criar atributos de equalização de realidades e oportunidade. Este andamento segue o mesmo sentido, por exemplo, das cotas em faculdades públicas.
Cabe ao Direito buscar soluções que viabilizem defeitos de origem em seu processo. Como falou Eduardo Couture (1904-1956) , jurista uruguaio:
“Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça.”
Assim, cotas e ações afirmativas não são uma nova forma de preconceito. São instrumentos de promoção da igualdade, da vitória da justiça sobre o Direito puritanista.
Neutralidade: Conscientização e equilíbrio
Alavancar consciência de uma batalha diária, que é de todos. Mas isso significa reconhecer que somos uma peça que pode estar sendo manipulada por alguém, ou grupo. No que é importante relembrar a célebre frase de Mark Twain (1835-1910), escritor americano:
“É mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas.”
A luta de Davis e de Tutu era de amplificar a consciência coletiva para que o contingente de uma causa cresça, tornando-a mais forte. É neste aspecto que reside a boa luta. Da conscientização coletiva enquanto se promove o socorro aos oprimidos. São dois braços do mesmo corpo, que devem operar em sintonia, sem nunca cair no erro de impor a obrigatoriedade da batalha a quem quer que seja.
E no caso de neutros assim permanecerem, o professor e pesquisador Wilson Gomes explicou o que isso significa:
“Aliados não são pessoas como nós, mas pessoas que quiseram lutar do nosso lado; e neutros são pessoas que escolheram não lutar, mas que nós não queremos que peguem em armas do lado do adversário.”
Entender essa dinâmica é um passo importante para que a distância entre opressores e oprimidos esteja cada vez mais próxima de zero.
Gabriel Galo é escritor, administrador e empresário. É colunista do Correio da Bahia, do Futebol S/A e do Arena Rubro-Negra, editor do papodegalo.com.br e já passou pelo Huffpost Brasil. É autor de “Futebol é uma Matrioska de surpresas” (2018), “A inescapável breguice do amor” (2020) e “Não aperte minha mente” (2020). Escreve todas as quintas-feiras no Aprendizagem Jurídica.
Leituras recomendadas
Racismo estrutural, de Silvio de Almeida
A revolução dos bichos, de George Orwell.
Unfair: The New Science of Criminal Injustice, de Adam Benforado
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Artigo publicado no blog do Aprendizagem Jurídica em 01 de outubro de 2020. Link AQUI!
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