Você ainda era uma criança quando eu resolvi que era hora de invadir esse mundo. Tão nova, estava à sua frente as agruras de uma vida sofrida como mãe funcionalmente solteira. Funcionalmente, apesar do papel passado e da casa compartilhada. Muito se fala dos pais que se vão, mas pior é aquele que fica e só atrapalha. Permitia-se ao progenitor a farra e a irresponsabilidade. Era uma época diferente aquela de mais de 30 anos atrás, muito embora ainda tantos compartilhem deste ideal. O que eleva e revela ainda mais a importância do seu papel.
A jornada era tripla. Trabalho, mãe e dona-de-casa. Criação era coisa da mulher. Cuidar da casa também. Cozinhar, então, claro, também e mais ainda. E depois ainda vieram mais dois filhos para aumentar a conta e reduzir todos os seus outros papéis a nenhum. Não era mais amiga, esposa, mulher; era quase tão somente mãe. Em tempo integral. E resignava-se na necessidade, na falta de caminho, no que era melhor para os filhos que cresciam, talvez mais devagar do que você gostaria que fosse. A idade da cria haveria de libertá-la. A sensação do dever cumprido.
Eu olho para trás e me pergunto: como aguentar?
Mais maduro, no hoje percebo que não havia qualquer outro motivo: era por nós. Pelos seus filhos você levou nas costas e guardou para si as reclamações, os choros, os desconsolos. O desespero que certamente chegou em diversos momentos. Lutava para que não transparecesse uma decerta infelicidade, porque esta história de que ser mãe é padecer no paraíso é mentira da grossa. Alimentava-se das alegrias aqui e ali, ressignificadas em justificativa de que valia a pena.
Sem dúvida, você transformou em flores o que era destinado à rudez do mais árido sertão.
Muito dessa trajetória de tantos anos, quando contada em linhas gerais, a faz se enquadrar na estatística. Quantas mulheres não seguem suas vidas como mãe exatamente da mesma forma? Quantas não guardam para si as angústias sem voz, para explodir de uma só vez, aguardando o momento da redenção?
Há uma diferença fundamental, no entanto, que a separa das outras: você é a minha mãe. Foi com você que a minha história se fez.
As memórias esparsas criam flashes de momentos que vêm e vão. Uma hora lembro, outra não, e tenho que recorrer a outros para validar as construções da minha mente.
Será que foi aquilo mesmo? Será que aconteceu?
As noites de sono tranquilo embaladas ao som de sua voz.
O abraço acolhedor de afeto, sem nada dizer, depois da surra, mais uma por apenas sermos crianças.
A sua gargalhada contagiante que nos levava no embalo.
Pelo retrovisor da infância, tudo parece tão longe… Mas tem impacto absurdamente presente, porque se o Ortega y Gasset dizia que “eu sou eu e minhas circunstâncias”, a circunstância de ter você na minha vida, Mainha, formou muito da minha personalidade.
Se me tornei mais humano, foi por sua causa.
Hoje nos falamos quase diariamente, só para saber como andam as coisas, porque há tempo livre e a vontade de bater papo.
É o quê, Mainha? Conte aí uma novidade, vá.
Se não tiver, invente.
Uma amiga me diz sempre “conta tudo e exagera”. Então, exagere, se desinteressante for o dia-a-dia.
De cá, já crescemos, seguimos nosso rumo. Demorou, mas você pôde seguir o seu. Projeto atrasado pelo papel de vó-mãe. Mais uma vez a tal da necessidade encontrando sua inabalável capacidade de cuidar. Que mais uma vez vem à tona e à prova, mesmo quando é a sua vez de ganhar o mundo.
Especializou-se em matar no peito as intempéries com leveza. Não é para qualquer um largar a família para seguir com a sua, mudar, mudar de novo, #tamojunto, e depois de tantos anos, abrir mão do pouco conquistado para desbravar as fronteiras do estrangeiro.
Sua coragem é do tamanho do seu sorriso.
Sua força é do tamanho de sua candura.
Seu trabalho foi feito. Daqui gente segura a bronca sozinho. Devemos agradecimentos eternos pelo que você viveu por nós. Demonstrações contínuas e intermináveis de amor máximo, sem nunca exigir nada em troca.
Vivemos para vê-la feliz, neste dia e em todos. Porque não seríamos se você não tivesse lutado tanto para que assim fôssemos, para que tudo fosse mais fácil.
Nosso papel de filhos crescidos, já há um tanto o único que nos cabe, é o de apoiar no que for, no que der e vier.
Não tendo aprendido com seu exemplo, no entanto, exijo algo em troca. Condição inegociável. Quero algo que se assemelha a possuir uma máquina do tempo, que transporta do agora para quando eu costumava contar a minha idade nos dedos das mãos.
Que no final, como alento, eu possa sempre recorrer ao lúdico e continuar sendo criança pedindo colo de mãe e um cafuné. Nunca haverá melhor que os seus.
Te amo, viu?
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