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Mais do que se pode acompanhar

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Comigo não é diferente. Acompanhar o noticiário no Brasil de Bolsonaro é tarefa praticamente impossível de não deixar sequelas.

Somos diariamente bombardeados por uma ofensiva incansável de retrocessos. Nunca se morreu tanto na pandemia quanto agora. Políticos se aliam para montar estrutura de barreira de proteção a investigações, com o falso pretexto de preservação da liberdade de expressão, mas, no fundo, é apenas o incentivo escancarado à criminalidade.

Quando uma lei ou conjunto de regras beneficiam a impunidade, tem-se, pois, a inversão de por que existe um regramento geral, acordo tácito da sociedade, que convive a partir de certos princípios universais. A moral haveria de ditar as leis, segundo a evolução legislativa, mas quem as formulam e assinam carregam nos ombros a necessidade de porem-se à frente interesses pessoais – que não raramente conflitam com o bem querer da res publica – e precisam de instrumentos que viabilizem a absolvição para depois se alinhavar este item menor que é o serviço público, do povo, pelo povo e para o povo.

Assim Milton Santos definiu a tal cidadania brasileira em seu ensaio “As Cidadanias Mutiladas”, publicado no livro “O preconceito” (Imesp, 1997):

“Me pergunto se a classe média é formada de cidadãos. No Brasil não o é, porque não é preocupada com direitos, mas com privilégios.“

Na mosca.

Quando ecoaram as manifestações de 2013, que depois foram potencializadas pela Lava-Jato e pelo desbaratino da Copa do Mundo (você já parou para pensar que talvez o Brasil ter sido campeão – ou pelo menos não ter passado tanto vexame – acalmaria os ânimos de uma nação envergonhada?), debatia forte-mente com meu pai sobre as causas.

Para ele, o desenvolvimento econômico que não trazia melhoria nos serviços públicos era o mote. Logo, fiava-se ele num anseio do povo – ou a parte vocal dele – para que a po-pulação em geral tivesse acesso a melhores condições públicas. Tinha, pois, um quê altruísta na visão de meu pai. Se por um lado, o indivíduo queria usufruir melhor das benes-ses da máquina pública, por outro, ir à luta significava a expansão deste querer a toda uma gente.

Só que esta abordagem nunca me descia.

Porque vinham junto mensagens conflitantes que eram impossíveis de serem ignoradas. Primeiro historicamente. Reabro aspas a Milton Santos:

“A desnaturação da democracia amplia a prerrogativa da classe média, ao preço de impedir a difusão de direitos fundamentais para a totalidade da população. E o fato de que a classe média goze de privilégios, não de direitos, que impede aos outros brasileiros ter direitos. E é por isso que no Brasil quase não há cidadãos. Há os que não querem ser cidadãos, que são as classes médias, e há os que não podem ser cidadãos, que são todos os demais.”

Milton Santos baseia esta visão nas raízes da formulação da sociedade brasileira. Continua ele:

“O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país.

Mas é também um modelo cívico subordinado à economia, uma das desgraças deste país. Há países em que o modelo cívico corre emparelhado com a economia e em muitas manifestações da vida coletiva se coloca acima dela. No Brasil a economia decide o que do modelo cívico é possível.

O modelo cívico é residual em relação ao modelo econômico e se agravou durante os anos de regime autoritário, e se agrava perigosamente nesta chamada democracia brasileira. A própria territorialização é corporativa.”

Para além de Milton Santos, os aspectos práticos das manifestações de então sacudiam a visão de meu pai para ainda mais longe do meu entendimento.

Nas ruas, não estava o povo que era, pois, mais impactado pela falta de qualidade e capilaridade do serviço público. Estavam aqueles que com carros e planos de saúde, que pediam MENOS governo, afinal, levavam consigo a certeza ignorante de que “financiavam” a derrocada do serviço público, “sustentando” vagabundos com o dinheiro “deles”.

A veia maior era a do ressentimento.

Se entendermos, portanto, a visão de Milton Santos como válida, como esperar que os políticos, eleitos por este mesmo povo – agora adicionados aqueles que não têm a prerrogativa de protestar, pois aprenderam desde cedo a saber o seu lugar e a manterem-se calados para levantar animosidades – seriam diferentes deles mesmos?

Não são os políticos, ora, frutos dos votos e de uma gente?

É como afirmou o historiador Leandro Karnal:

“Não existe país no mundo em que o governo seja corrupto e a população honesta e vice-versa.”

Construindo em cima da frase de Karnal, não existe país no mundo em que o governo esteja interessado no bem público, quando sua população apenas aguarda a próxima mamata para chamar de sua. “Primeiro eu; o resto se vê depois.”

Assim, pipocam notícias que tratam de inacreditáveis ideias e projetos, numa sequência de golpes que deixa todos atônitos, e na impossibilidade de que se barre tudo, coisa ou outra vaza, saindo da obscuridade do absurdo e adentrando ao universo das coisas em conformidade com a lei.

No fim de um jeito torto, é a moral que dita as leis, mas em um ambiente que beneficia e protege os malfeitos, em vez de se fortalecer o publicamente correto, prega-se a baba raivosa cheia de soluções fáceis e que invariavelmente dão em crise, prejudicando o país como um todo, sem distinção. Claro, alguns sofrem mais. Porém se o raciocínio até aqui se mantém, contanto que o sofredor não seja “eu”, tudo certo. É o pior lado da moral que prevalece.

No processo de embrutecimento político, trataram  radicais pró-Ditadura como anedota, a esquerda como vilã inequívoca, a Lava-Jato como ofensiva autoevidente contra a corrupção, com apoio da grande mídia e dinheiro farto que jorrava em esquemas internacionais – tema finalmente apreciado pelo STF – e pelos cofres extremistas da Fiesp, encabeça pelo maior fiador do aborto Aliança pelo Brasil em São Paulo, Paulo Skaf, os tais saíram de verde e amarelo para conjecturar ridículos em frente ao pato da Fiesp.

Os radicais cresceram, alimentados pelos recursos e autoalimentados pelo ódio que propagavam. Contra todas as evidências e avisos, ainda assim se apostou alto no capitão. E o resultado estamos todos assistindo diariamente, num show de horrores sem precedentes.

E todo é notícia nova que só eleva o escárnio. Estamos presos num longo dia da marmota, em que se acorda com ataques às instituições, almoça-se uma pandemia intermináveis e leis (i)morais, e vamos dormir com a dúvida de golpe.

É coisa demais. Muito mais do que se pode acompanhar. Muito mais do que é salutar seque saber que acontece.

Mais fácil é fechar os olhos para a realidade e tocar em frente, na medida do possível. “Faço o meu, e é o que posso.”

Terminasse aí o imbróglio, na esfera individual, talvez estivéssemos experimentando vislumbrar uma saída. Mas não. Somos uma sociedade de privilégio. E de olhos bem fechados, não apenas nos dispomos a não enxergar a realidade, como nos fechamos à racionalidade de ideias, nos agarrando à opinião pessoal sobre a ciência.

E diante da complexidade do mundo e das conexões, tudo se reduz ao que eu acho e pronto, sem sequer assimilar o impacto coletivo. Quando alguém se recusa a sair sem máscaras, a se manter em casa, a defender a vacina e mantém o pé em kit milagrosos que não passam de pura charlatanice – impulsionada por gente que tem pulsão de morte – vê-se, pois, que o governo é exatamente o espelho de um povo.

Mesmo assim, muitos olham para o governo e seus asseclas e se recusam a enxergar a ignorância incompetente como vetor do retrocesso, e preferem atribuir grandes estratégias e projetos. Não é, pois, análise em evidência, mas análise em não aceitar o Brasil pelo que ele é. Desligam-se estes, também, por não aguentar ver o que está diante de seus olhos. Eu entendo. Estamos todos cansados.

Não há alternativa, entretanto. A batalha, encarando a realidade, por vezes deixando-a de lado preventivamente para manutenção de uma sanidade mental efetiva – não a fingida de quem sai como se nada estivesse acontecendo. Há de se reaprumar e tornar ao fronte.

Porque não serão eles a descansarem. Pelo contrário. Com o poder na mão, tudo fica mais fácil. Quem abandona o flanco, facilita o avanço pelo fim da Democracia. Assumamos o inimigo de vez, como ele é.


Editorial publicado Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 7 a 11.


liberdade de expressão,
Capa da Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021.

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