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Juntos de novo

Juntos de novo

O reconhecimento

Era noite de reencontro na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Noite de aproximação com um passado que reverbera até os dias atuais na vida de quatro pessoas. Quatro vidas que em determinado momento do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, estiveram ligadas pelo mesmo sentimento de justiça e liberdade. Cesar, Célia, Crisóstomo e Vandilson, unidos a mais uma multidão de outras cabeças jovens e dispostas, quiseram transformar a situação política de um Brasil amordaçado. Escolheram viver, naquele período, para esta finalidade. E conseguiram ao se lançarem juntos, numa experiência única e inesquecível: serem vendedores de um jornal da imprensa alternativa, que denunciava as consequências desastrosas da ditadura em todo o país. O Jornal Movimento.

José Crisóstomo de Souza era o diretor da sucursal baiana, e Cesar Olimpio de Oliveira Neto, Célia Regina Menezes Bandeira e Vandilson Pereira Costa eram os responsáveis, junto com tantos outros parceiros, por disseminar cada exemplar pelas ruas da cidade soteropolitana. Uma tarefa, para eles, muito importante. Uma missão a ser cumprida.

Naquela noite eles se reencontraram, quase 30 anos depois. Pelo menos dois deles, Cesar e Crisóstomo, não se viam desde 1981. Os cabelos já grisalhos não camuflaram as feições de cada um, rapidamente reconhecidas entre eles. E um abraço encurtou esta lacuna de tempo, que distancia, mas não apaga momentos marcantes. Só faz compreendê-los melhor no futuro.

Enquanto os outros não chegavam, Cesar caminha pelos corredores, com as mãos cruzadas para trás, observa o refeitório, sobe as escadas, desce as escadas, assovia, olha para o teto, descruza as mãos, alisa as paredes. Parecia estar fazendo um reconhecimento de território. Território no qual esteve inúmeras vezes, tempos atrás. Tempos de movimentação estudantil e política. Período em que a criatividade se materializava em murais, discursos e, mais ainda, em atitude. É. Atitude deveria ter sido o nome usado para classificar as décadas de 1970 e 1980, da mesma maneira que os historiadores dão nome a os períodos clássicos da humanidade. Eles brilharam nas décadas da Atitude.

A Faculdade de Arquitetura da Ufba, foi o cenário para revisitar o passado e, o mais importante, rever os companheiros de muitas aventuras. Até o dia chegar, muitos e-mails foram trocados e na escrita podia se notar um tanto de ansiedade de cada um, acompanhada de certa euforia. Mas porque lá? Porque se encontrar num ambiente onde uma nova geração está presente, recriando o espaço, tornando-o novo, outro?

Cesar desce os degraus largos, que ligam o térreo ao subsolo, e comenta:

– Demorei muito pra estacionar. Antigamente ali era tudo vazio!  – Apontando para o mar de carros que ocupava o terreno onde, na década de 1970 era um campo aberto.  

– É… hoje os estudantes têm carro! Respondo, com um riso leve na voz, achando graça da comparação. Afinal, o fato era curioso e não deixava de ser um sinal de uma nova geração. De um novo comportamento.

Era tudo diferente, mas ao mesmo tempo, tudo igual. Eu queria convidá-los para uma viagem no tempo, e a Faculdade de Arquitetura era o lugar perfeito para isso. Lá, eles se encontraram muitas vezes. No auditório, ou naquele mesmo pátio. Reuniões que varavam a noite com o objetivo de discutir, organizar, planejar e agir. Um verdadeiro plano de ação contra o inimigo, a ditadura. E fizeram isso muitas vezes. Eu pensei que lá, eles podiam se sentir acolhidos, ou provocados a se transportarem. Afinal, as paredes daquela velha faculdade eram as mesmas, o bairro era o mesmo. E eu estava certa. A viagem aconteceu.

O encontro ocorreu em uma de muitas salas de aula da faculdade. A porta aberta mostrava o trânsito frenético de estudantes pelo corredor, uns chegando para mais uma bateria de aulas e outros indo embora, finalizando o dia. Gargalhadas, brincadeiras, conversas em alto tom podiam ser ouvidas de dentro da sala. Na cantina, ao lado, uma estudante pede um suco de laranja. “Bota na minha conta!”, ela grita.

Foi ai que olhei para frente e vi que o reencontro já tinha começado… Durante a meia hora de espera pelos outros, não enxerguei o que estava acontecendo diante de mim. Cesar e Crisóstomo, que haviam chegado mais cedo, conversavam sobre suas vidas e o que haviam feito delas. Juntos, se lembravam de pessoas, datas marcantes, lugares onde estiveram e que serviram de palco para muitos protestos, reuniões, trabalhos conjuntos e, é claro, para muitas festas. “E você, Cesar? O que tem feito?”.

“Liga a câmera! Já rolando!”, disse discretamente ao meu parceiro e também jornalista, Marcelo Issa, que me acompanhava com a função de registrar o grande reencontro daquelas pessoas, eternas apaixonadas pelo passado. Apaixonadas não pelo que enfrentaram em decorrência da repressão criminosa do golpe militar, mas sim pelo o que foram naquele período, pelo o que construíram. Um passado que faz com que eles sintam orgulho deles mesmos.


Um jornal de jornalistas

Um desentendimento entre o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, o então editor do Opinião, jornal alternativo lançado em 1972, e o empresário Fernando Gasparian, dono do empreendimento, provocou danos irreparáveis à estrutura do projeto. Raimundo Pereira foi demitido e boa parte da redação resolveu acompanhá-lo em solidariedade. Logo depois, fundariam uma empresa de quase trezentos jornalistas de várias tendências políticas de oposição à ditadura militar, o Jornal Movimento.

A professora Maria Aparecida de Aquino em seu livro Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978), afirma que, embora tivessem o mesmo pensamento antigolpe,  Raimundo Pereira e Fernando Gasparian divergiam sobre assuntos ligados à propriedade do jornal. Para Pereira os jornalistas deveriam possuir boa parte das ações da empresa, pois, dessa forma, a autonomia da redação nas decisões seria respeitada. Ele acreditava em um jornal de jornalistas. No entanto, Gasparian não abria mão da propriedade, embora se comprometesse a não monopolizar as idéias do Opinião.

Segundo o jornalista, o compromisso foi honrado somente até as primeiras 121 edições do jornal, depois os conflitos começam a ser rotineiros e Gasparian decide demiti-lo. Em protesto, grande parte da redação, que compartilhava das idéias do ex-editor, se retirou do jornal, reafirmando a vontade de fazer uma empresa jornalística que fosse dos próprios profissionais. Com essa intenção, criam o Jornal Movimento, com linguagem mais popular e controle acionário repartido entre os jornalistas.

Para fundarem a sede do Jornal Movimento, em 1975, os jornalistas, que estavam no Rio de Janeiro, se mudaram para São Paulo por motivos unicamente políticos e de afinação com a linha editorial do jornal que estavam criando. Em São Paulo, a classe operária estava começando a se manifestar contra a ditadura e havia um movimento crescente de massa. O Movimento, por ser declaradamente de esquerda, dependia das ações populares para alimentar o seu conteúdo, portanto, a capital paulista era o lugar ideal para se trabalhar.

A linha editorial do semanário era definida por um grupo representativo de intelectuais, jornalistas e artistas progressistas. Dividido em sucursais por todo o Brasil, tinha em seus quadros figuras como o ativista Chico Mendes, morto em 1988, que vendia os exemplares na Amazônia. Integravam o conselho editorial, entre tantos outros, nomes como Chico Buarque de Hollanda e Fernando Henrique Cardoso. No conselho de redação estavam jornalistas renomados, como Aguinaldo Silva e Bernardo Kucinski, além do próprio editor-chefe Raimundo Pereira, que hoje comanda a Revista Retrato do Brasil e já ocupou cargos relevantes na Veja e na Folha de São Paulo.

O Movimento era voltado para os problemas reais do povo brasileiro. Aqueles escondidos pelo conto, chamado milagre brasileiro, inventado pelos militares. O jornal preservava uma linguagem que pudesse atingir, principalmente, as classes populares, além de optar por temas que estivessem diretamente ligados ao dia-a-dia do trabalhador. Os artigos, reportagens, notícias e charges denunciavam, analisavam ou comentavam um Brasil que só o povo conhecia.

Leitores assíduos e vendedores dedicados como as cinco pessoas que retornavam à Faculdade de Arquitetura naquela noite, com o único objetivo de reviverem o passado. Reviverem e narrarem para mim (e, no final das contas, para eles mesmos, em um exercício de auto descobrimento ou de reencontro com os jovens destemidos que foram tempos atrás) como era tamanha a expectativa de todos, por exemplo, pela chegada do jornal na cidade, a cada semana. E como se sentiam tão úteis e fortalecidos quando iam para as praias nos fins de semana, ou para a porta do Teatro Castro Alves, ou Teatro Vila Velha, para venderem o Movimento. “Engraçado é que algumas pessoas que viam a gente se afastavam, com medo, outras compravam o jornal quase que escondidos!”, relembra Cesar.

Depois de algumas lembranças se fazerem presentes, e até principiar um debate sobre o cenário político atual, a conversa é interrompida pela chegada de Célia Bandeira. Cesar e Crisóstomo se levantam e denunciam nos rostos a alegria de rever a amiga. Cesar a abraça, um abraço demorado, carinhoso. Nunca teve com ela uma aproximação de amizade profunda, mas a figura de Célia foi, naquele momento, a materialização de uma das épocas mais felizes de sua vida.

Crisóstomo beija a sua mão, demostrando respeito. Um comportamento afetuoso e elegante, típico de um cavalheiro, de um homem da realeza, para com a dama. Homem do reino dos ideais revolucionários, dos sonhos heróicos onde habita Dom Quixote de La Mancha, com quem, inclusive, se parece bastante fisicamente. Crisóstomo tem a fisionomia semelhante ao do personagem de Cervantes! Esta foi a primeira leitura que fiz dele, logo quando o conheci há tempos. E ele gostou disso. “Os devaneios são bem parecidos mesmo!”, brinca ao conversarmos sobre esta minha impressão.

Celinha, como era conhecida no tempo em que era estudante de arquitetura, “invade” a sala e parece impulsionar ainda mais a atividade proposta para aquela noite: ser feliz! Se sentir poderoso novamente, ser jovem, ser revolucionário. E, por mais que o tempo tenha passado, e as experiências de vida, acompanhadas com a idade, tenham aumentado, a essência de cada um ainda é a mesma: aguerrida. Todos, a sua maneira, através da profissão que escolheram e da filosofia de vida que construíram, continuam tentando modificar para melhor o país onde vivem.

Alguns minutos depois, Vandilson aparece. “Ô, minha gente, desculpem o atraso!”, interrompe o clima, ainda de confraternização com a chegada de Célia. Abre os braços e diz não acreditar que estava ali com os outros.  A voz, alterada, expressa alegria. Me abraça, abraça Célia. Cumprimenta os homens. E, atiçado por uma fotografia antiga que aparecia ele e outros companheiros em um dia de manifestação, posta em cima da mesa por mim, ele dispara a falar. As lembranças cambaleavam e saiam de sua boca, sem pausas. Ele era só emoção. “Essa daqui – dando uns tapinhas na mão de Célia – foi, por muito tempo, a minha referência no movimento estudantil!”, declara-se. Um sorriso envergonhado e modesto enfeita o rosto de Célia, mulher elegante, bem vestida e de belos cabelos grisalhos que a faz única e ainda mais interessante. Assumiu a sua passagem de tempo, segura de si, de sua beleza feminina.

As horas adiantadas pediam um fim daquele reencontro. A faculdade já ficava mais silenciosa, o som que se ouvia agora eram dos grilos da noite, dos poucos pingos de chuva que ainda insistiam em cair lá fora. Era chegado o momento de mais uma separação daquele grupo, que vai existir coeso, unido por muito tempo.

O Jornal Movimento fechou as portas em 1981, devido às mudanças políticas, às transformações, e também a chegada de outras e mais novas produções jornalísticas, mas a responsabilidade que Cesar, Célia, Crisóstomo e  Vandilson assumiram quando pegavam os exemplares para vender ou dirigiam uma sucursal, eles levaram para a vida. Eles ainda se sentem responsáveis, ainda sonham, mas também sabem que o novo sempre vem e, sabiamente, concedem espaço para este agir. E, em um dos tantos e-mails compartilhados com o grupo, pergunto aos quatro quais tinham sido os seus sonhos e se eles permanecem iguais nos dias de hoje. Crisóstomo responde, com palavras intocáveis, impossível de serem convertidas em um discurso indireto, merecendo serem passadas adiante como nasceram, um desfecho digno para esta história:

Nossos sonhos eram de um mundo muito, muito melhor. Sem miséria e sofrimento. Sem injustiça. Mais belo também. O sonho de uma grande virada, que se daria em nosso tempo, para a nossa geração, e que nos levaria diretamente a esse mundo novo, inteiramente outro. Era o que dava sentido a todas as nossas ações. Algo que, para nós, só as pessoas não generosas, egoístas, ou as pessoas inconscientes, não quereriam ou veriam. Tínhamos esses dois lados (nós vs. eles) bem definidos. A tarefa também. O script – universal e necessário. A Teoria.

Meus sonhos hoje são os mesmos. O script é que mudou um pouco, ficou menos fechado, menos absoluto. A meta também. Agora deixamos mais para as gerações futuras cuidarem ou inventarem. Problemas novos e soluções novas vão sendo criados.  E agora damos mais importância ao sentido do presente, para nós mesmos e para as outras pessoas, em seu/nosso destino particular. Ficamos menos convencidos e mais abertos. Acho.

Mas o que molda minhas ações, move minhas paixões, o sonho que me embala – são as mesmas coisas. Com um grão de realismo – e de modéstia. Agora, por exemplo, acho que há tempo e necessidade para eu me ocupar do que explorações, digamos, filosóficas, novas, que possam dizer algo válido para essas coisas. Agora, também, temos um processo político em andamento, para apoiar ou questionar. Temos, enfim, uma construção a ser tocada a muito mais mãos, e de modo mais incerto e tentativo – bem mais, do que a nossa idéia anterior, de vanguarda, concebia. São as nossas esperanças, e também nossos limites.


Jornalismo literário publicado Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021, páginas 45 a 52.


liberdade de expressão,
Capa da Papo de Galo_ revista #12, de 26 de fevereiro de 2021.

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