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Mutá, Esparta e cachaça

Mutá, Esparta e cachaça

(por Paulo Galo Toscano de Britto)

Quem é ou foi menino em Mutá cresce olhando pro fiofó de Itaparica.

Explico. O pequenino Mutá tem menos de 1.000 habitantes é um dos distritos de Jaguaripe, na Bahia. Ladeada por metróples do mesmo quilate -Cações e Pirajuia– e espremida pelo mar e pelo mangue, Mutá fez parte da minha infância quando meu pai foi transferido pela General Motors para a Bahia. Depois voltamos pra São Paulo e mais uma vez pra Bahia mas isso é uma outra história.

Por onde ia…ah, o fiofó. Da praia avista-se em frente a pequena ilha da Cal, propriedade particular de um certo dr. Sturaro e atrás desta a ilha Matarandiba, na contra-costa de Itaparica; à direita e ao longe a ponte do Funil, que liga Itaparica ao continente baiano, caminho para Nazaré das Farinhas. Á esquerda, o mar que trazia os navios da Baiana, vindos a costear o lado itaparicano da Ilha, em oposição à costa de Vera Cruz.

Muito bem, meus pais compraram uma casinha nesse lugar pra fins de veraneio. Era terminar as aulas e lá seguia Dona Maria da Glória com sua filharada pra passar dois ou três meses em Mutá, enquanto meu pai ficava em Salvador trabalhando, para somente juntar-se aos seus nos finais de semana.

Como toda região de mangue, aquele lugar é exuberante pela riqueza de seu meio ambiente, que acolhe a simplicidade e elegante cordialidade dos seus pouquíssimos habitantes, que têm na pesca e no marisco sua principal fonte de alimentação e na frequência dos veranistas sua fonte de pequena renda.

Os veranistas faziam do inigualável banho de mar (quando a maré estava alta) e dos longos passeios pela praia (possível na maré baixa) suas principais atividades. Mas tinha outras coisas pra fazer -ou não fazer. Pescar, catar caranguejo, tomar banho no Rio Grande, visitar os povoados vizinhos. Um dolce far niente lerdo e bom.Mas acima de tudo prosear com moradores, outros veranistas e visitantes ocasionais. A prosa era senha para viver Mutá. Pés no chão e trajes de praia -mesmo não estando lá- durante o dia e roupa (pouca) a partir do entardecer, prosear lenta e gostosamente era a garantia de uma convivência pacífica, suave e não raro divertida.

Como no dia em que Maria das Dores, ou melhor, Das Dores, ou ainda Dasdô, moça da terra que acabara de parir seu sexto filho, chega com a criança no colo na porta do Álvaro, onde eu me encontrava sentado a tomar cachaça com caju e sal, uma espécie de rito que acompanhava essa celebração de convívio que havia nos finais de tarde, ora na casa de um, ora na casa do outro. Mas sempre com as cadeiras à porta.

– Dr. Álvaro, queria muito que o senhor batizasse esse meu filho que acabou de nascer.
– Com todo prazer Das Dores. Que dia vai ser?
– Domingo que vem, cinco horas.
– Tá bom vou estar lá. Como é o nome do menino?
– Sei ainda não, o senhor não quer dar um nome pra ele?

Tive um pequeno aperto no coração nesse momento. Álvaro era um velho advogado, com fumos de jurista e fala impoluta antes da terceira dose. Pressenti o desastre.

– Das Dores esse menino vai ter nome de rei. Vai se chamar Cleomenes, que nem o rei de Esparta.
– Creo o quê, dotô?
– Cleomenes, repita comigo: Cle-o-me-nes

Repetiu. Umas cinco vezes e foi embora.

– Álvaro, esse nome… Não sei, não… Não é meio complicado pro vernáculo de Dasdô?
– Galinho, esse é o sexto filho dela. Cada um teve um pai diferente e a mulher taqui em Mutá, catando marisco. Analfabeta de pai e mãe. As chances sociais desse menino são praticamente zero. Que tenha pelo menos no nome algo de grandioso!

Amigo conhecido pela elegância e pela vaidade intelectual, preferi não insistir no assunto e voltamos pra garrafa de pinga.

Corta para cinco anos depois. Lá estava eu novamente à bordo de uma garrafa de pinga comprada na venda de seu Zeca, um cesto de cajus e um pires de sal, refestelado na porta de casa a ver o, digamos, movimento da rua ao fim da tarde. Passava um e dizia “boa” e outro e outro. Alguns deles já bem mamados. Quando no fim da rua avisto Das Dores, com outro menino em um braço e a mão nas cadeiras, olhando pra todos os lados a gritar:

– Ô Creôôôômi, onde é que tu tá menino?!

Devia estar em Esparta. Ou no mangue logo ali perto, quem sabe, né, Álvaro?

Este texto foi escrito pelo meu pai, Paulo Galo. Link, aqui, pro original no finado há anos Blog do Galinho. Nos comentários, dizem que Creômi resolveu que se chamaria André Luiz, porque há um certo limite na aceitação de menino homem. E ele até que prosperou, vejam só. Com Cleomenes, havemos de concordar, é que não teria chance.

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