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O casal anti-Copa abalado

O convite dizia claramente: a partir das oito e meia. Era este o horário do brunch que aconteceria no apartamento varanda-gourmet-cozinha-americana de Jamile e Benício, o casal anti-Copa. Depois do sucesso da primeira rodada contra a Suíça, desta vez um tropeço levaria o evento a ganhar contornos épicos. Afinal, parar na Costa Rica frearia de vez o ímpeto de torcer pelo hexa que os alienados brasileiros já viram arrefecer cinco dias antes.

Os convidados apareciam com a alegria possível de quem madrugou na sexta-feira. Na farta mesa montada, réchaud de ovos mexidos com bacon, pães, doces, iogurtes, sucos, frutas. O toque luxuoso vinha pelas mimosas, que as mulheres bebericavam contando sobre a última viagem que fizeram a Miami, onde lá só se toma isso para começar o dia. Luxo mesmo é mimosa no brunch.

Às nove horas em ponto, estavam todos grudados na televisão. Dispostos onde havia lugar, acompanhavam com afinco a sonolenta partida. Comentavam, “como alguém gosta de ver isso?”, “esse joguinho horroroso é merecido pra quem perde tempo com besteiras”. Alguns estavam insatisfeitos e se viam tolhidos do argumento principal do grupo, afinal, a história de comparar IDHs e indicadores sociais não era válida, mal ranqueada nestes quesitos que é a Costa Rica.

Como sempre, cada pancada no Neymar era comemorada. Cada passe errado, celebrado.

No intervalo, o reabastecimento das mimosas foi feito. Os homens não entendiam se já era permitido beber aquela lager belga top gelada, pois nem dez horas da manhã eram. Comeram folgados os pratos de café-da-manhã americano, sonhando com as próximas férias que cada um torcia para ser antes da do outro, pra fazer aquela inveja boa, motivadora.

Parte do bando ficou encucada quando William saiu para a entrada de Douglas Costa. Até eles, que não gostam de futebol e têm muito mais com o que se preocupar, sabiam que havia risco de o Brasil melhorar. Quem sabe até, heresia!, bate na madeira!, ganhar o jogo. Vade retro!

O Brasil foi ao ataque. A Costa Rica se defendia como podia. Bola na trave, zagueiro tira raspando, chute pra fora.

Um se exalta. “O Neymar é o retrato do problema do Brasil. Todo mundo quer ser o maioral, o bam-bam-bam. Mas sem esforço, sem trabalho. Aí fica se exibindo, ostentando, e os alienados acham que o mundo é isso, que a vida é assim! E o empresário, que sofre com a violência, com assalto, com falta de gente que não quer trabalhar, com um governo que impõe uma carga tributária sem dar nada em troca? Esse aí o Jornal Nacional não mostra!” Foi aplaudido de pé. Dizem, inclusive, que Renata Patrícia, mulher do Maurício, sensível que é a temas sociais de verdadeira relevância, chegou a chorar com tanta verdade assim, na lata. “Cara, você tem que escrever isso no Facebook!”

Até que… pênalti para o Brasil. Os amigos estão paralisados, incrédulos. Tensão no ar. O VAR é acionado. O árbitro volta da tela da revisão, desmarcando a falta. Foi a senha para se renderem ao delírio! Pulavam em êxtase extremo. Riam da cara do Neymar uma risada ensandecida. “Arruma a cama pra ele deitar de vez!” Além disso, lembraram do jargão que já ganhava os quatro cantos do Brasil: “JUIZ LADRÃO! SAÚDE E EDUCAÇÃO!”

Os seis minutos de acréscimo pareceram não esmorecer a horda. Mas eles não esperavam o golpe tão rapidamente. Com o bico da chuteira, Coutinho empurrou a bola para dentro do gol de Keylor Navas. Gol do Brasil!

A discórdia foi instaurada quando o Carlão, amigo do Maurício, gritou “GOL, PORRA!”, segurando o “a” por mais tempo, no meio de todos. Foi instantaneamente fuzilado pelos olhares de reprovação de todos que ali estavam. O bafafá estava armado. A regra era clara: era proibido torcer pelo Brasil! Maurício tentou apaziguar os ânimos, protegendo o amigo. Se reuniram, um longo bate-boca foi instaurado. Dedos em riste, mulheres chorando, alguns virando o rosto das crianças para não verem tamanha baixaria. E no meio do rebosteio, a TV grita o dois a zero. Gol de Neymar.

O silêncio indignado, ‘do Neymar NÃO!’, foi interrompido por mais um grito de gol. Carlão já tinha meio corpo para fora da janela, gritando, secundado por tantos vizinhos não-despertos em igual estupor. Desta vez, Benício, dono da casa, foi incisivo. Exaltado, tratou de expulsar o visitante indigesto, pondo-o dali pra fora. Carlão, não se fez de rogado, respondendo teimoso: “BANDO DE MALUCO! TÔ FORA! Ô, 58 FOI PELÉ, E 62 FOI O MANÉ…” Seu canto foi abafado pelo elevador que o carregava para bem longe dali.

O clima na sala ficou de velório. Maurício pedia desculpas pelo amigo. Jamile e Benício, atônitos, não sabiam bem o que fazer. Teceram, então, discurso para manter em alta o ânimo abalado do grupo que começava a se partir. “Não podemos deixar um caso isolado nos abater! Nossa causa é nobre e importante demais! Somos os líderes de algo que é muito maior que a gente! Hoje, mais do que nunca, precisamos extravasar nossa indignação. Não podemos permitir que a alienação tome conta deste país! Quem está com a gente?” Os amigos levantaram as mãos em apoio, alguns mais firmes que outros. Despediram-se com a promessa de inundar as redes sociais com suas palavras anti-Copa, em qualquer oportunidade que vissem.

Quando todos saíram, Jamile e Benício olharam-se, um tanto cansados, um tanto preocupados. Tiveram um brainstorm que trouxe uma ideia que seria colocada em prática no próximo jogo. Decidiram fazer mistério sobre o que era. “Vai ser uma surpresa que vai levar nossa causa ao estrelato!” Abraçaram-se.

– E o que vamos fazer com relação a Maurício e Renata Patrícia?
– Simples. Não serão convidados. Temos que escolher melhor as nossas amizades.

Crônica publicada no HuffPost Brasil em 22 de junho de 2018. Link AQUI!

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