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O enterro de Bacurinha

O enterro de Bacurinha

(por Paulo Galo Toscano de Britto)

Nenhum acontecimento, por mais espetacular que fosse, seria capaz de abalar a rotina de Mutá, cantinho da Bahia onde o lento passar do tempo foi levado às últimas conseqüências. Notável vocação para o prosaico, para o suave vagar das horas. Rápido, mesmo, só aratu em pé de mangue.

Mas nem mesmo a inadequação do espetacular ao cotidiano de Mutá foi capaz de não provocar um certo rebuliço entre seus habitantes e veranistas quando Bacurinha morreu.

Figura lendária do lugar, era querido por todos. Boa prosa, prestativo e ótima companhia para uma garrafa de pinga com caju e sal, Bacurinha morreu aos poucos, consumido pelo cigarro. Suas outras mulheres, moradoras das vizinhas Pirajuía e Cações em nada contribuíram para o seu fim. Ao contrário, fizeram feliz sua existência, até o seu fim.

O gosto pela pinga também não merece o crédito. Nunca foi visto às quedas, derrotado pela manguaça. Bebia todo dia, é verdade, mas nunca parecia exagerar, embora muitas vezes tomasse tudo o que podia.

Tava mortinho, mortinho na manhã de uma segunda-feira de carnaval. Completaria 65 anos no dia seguinte. Brevíssimas lágrimas e lá se pôs dona Nicinha a organizar imediatamente o velório do marido na sala da casinha humilde.

“Cadê a porra do caixão que não chega pra gente enterrar esse homem, meu deus?”, perguntava Edson, veranista amigo do casal e vizinho de cerca. Deusdete, vereador em Jaguaripe, prometera trazer um o mais rápido possível. Mas rapidez era um comportamento estranho aos hábitos locais, como já expliquei, no que o caixão só foi chegar perto das seis da tarde. A essa hora, já tava todo mundo envergado com a cachaça servida por seu Zeca, dono da única venda, em homenagem a um dos seus mais assíduos clientes, ali estirado na mesa da sala, iluminado por pequenas velas.

O povo ia chegando, olhando o defunto, abraçando a viúva e indo cuidar da vida. Até aquelas duas mulheres, que não eram do lugar mas mostravam-se discretamente tristes.

Só quatro homens se apresentaram pra carregar o caixão até Pirajuía, onde ficava o cemitério, pouco menos de dois quilômetros dali. Tarefa mole –Bacurinha não devia pesar mais de 50 quilos– se eles não estivessem tão estragados quanto os outros. Mas não deixariam o amigo sem um enterro cristão, isso é que não! Seguiram pela estrada, que insistiu em balançar desde o primeiro passo.

Duas horas depois e mais duas garrafas de cachaça já tinham lavado as gargantas insaciáveis daquele féretro cambaleante. No caminho pararam dezenas de vezes pra aprumar a visão e brindar ao defunto. Numa dessas vezes, também, pra ir buscar o corpo, que rolou pro mangue após a queda do caixão, perto da curva da carambola.

Chegaram e foram direto pra casa do coveiro, passava das dez da noite. Sorte que restava pinga pruns três goles bem servidos, não fosse isso Toinho Coveiro não sairia de casa nem sob tortura. As palavras finais, ditas ao pé da cova por Edson resumiram o espírito iconoclástico daquele povo de Mutá: “Bacurinha, vá com Deus!”. E Bacurinha baixou, enfim, à terra, diante de cinco pares de olhos mamados. Merecia pelo menos a homenagem de Bethânia, Gal e Pavarotti, cantando Manhã de Carnaval.

Este texto foi escrito pelo meu pai, Paulo Galo. Link, aqui, pro original no finado há anos Blog do Galinho, publicado em 24 de maio de 2007. Um dos textos dos quais ele mais gostava.

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