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O que aprendi com a morte de meu pai

O que aprendi com a morte de meu pai

Eu estava a caminho de um evento logo cedo quando o meu celular tocou. Nem ainda 7 horas da manhã eram. Do outro lado da linha, Angélica – sua esposa que o acolheu com toda ternura que dela transborda -, com voz em desespero me dizia que haviam ligado do hospital e que ela devia ir para lá. Mais não disseram. Foi angustiante hora e meia até a confirmação do inevitável: meu pai tinha morrido.

Ali mesmo comprei as passagens e em mais algumas horas chegamos a família toda exilada em São Paulo à velha cidade da Bahia. Nessas horas, a gente dá uma de São Tomé, só acredita vendo, e eu vi.

Desabei.

Neste um ano que se completa hoje, dia 25 de agosto, aprendi algumas coisas. Sobre meu pai, sobre a morte e, em especial, sobre a minha relação com a morte e com meu pai.

DA PREPARAÇÃO

Nós nunca estamos preparados para a morte. É uma gradação entre a surpresa que nos pega pelos pés e uma possibilidade bem grande de que aconteça, mas nunca para a consumação do inevitável. Convivemos com cerca de um mês de UTI e internação, com uma infecção que não cedia, com médicos sempre externando preocupação. O caminho da aceitação estava sinalizado. Por mais que estejamos cientes, tem um bichinho que gruda na cabeça da gente e não larga: a tal da esperança. Enquanto houver vida, há expectativa de que assim continue. Recebemos conscientemente as informações e inconscientemente as transformamos em exceção: com ele vai ser diferente.

DO ESQUECIMENTO

A gente vai esquecendo. A fisionomia vai sumindo. Como era mesmo que ele dizia? Aquela história… foi ali ou acolá? E quando foi? Lembrar vai se tornando tarefa cada vez mais árdua. Reside aqui o que acredito ser uma das maiores dores do luto: a certeza do sumiço. Evaporamos. Somos, e num estalo cósmico, deixamos de ser. Vez ou outra, vasculho os baús por ele, físicos ou metafóricos. Por vezes me surpreendo, noto um detalhe que passou despercebido. Enxergar o escondido faz parte do trabalho de manter sua feição jovem em minha mente, brilhante, presente. Viva. Remexo o quieto por saudade, por vontade, por qualquer coisa que o valha, mas, principalmente, para que ele não desapareça.

O pior, no entanto, é a voz. A fotografia capta o instante. E a voz? Estejam certos: a fotografia é commodity: todos têm e é fácil de achar. A voz, contudo, é artigo raro.

E dói, me dói profundamente, agonizantemente, que eu duvide ser capaz de reconhecer sua voz aqui neste instante, se do nada aparecesse.

A gente desaparece pela fala.

DA METAMORFOSE

O luto passa por processo de mutação extravagante. Não vou dizer que se esvai. Ele tão somente muda de rosto, passa da dor à saudade nostálgica. Aqui habita o maior sofrimento do luto recém-adquirido: sabemos que um dia deixaremos de chorar a morte. Como podemos nos permitir aceitar que não lidaremos com aquela dor lancinante e que é tanta prova de amor?

Saiba: não é o tamanho da sua dor que garante proximidade, nem o tanto que se chora, nem o quanto nos vemos empacados. Não existe competição nem comparação. Transparecemos de maneiras diferentes e, assim como externamos nossa dor de acordo com nossos mecanismos de enfrentamento, também evoluímos em tempos diferentes.

O tempo é senhor de todas as coisas. Cura (quase) todas as feridas.

Saímos, portanto, da dor à saudade. São faces da mesma moeda. Nenhuma é todo: a dor, no máximo, adormece, com radar ligado esperando a oportunidade de despertar. E vez outra, aqui e ali, ela emerge, lutando num yin-yang confuso, engatilhada por qualquer coisa que naquele momento faça sentido.

DAS ESCOLHAS

É matéria de coisas bonitinhas de leito de morte: o arrependimento humano que se abate naqueles em despedida. Confessam pecados, admitem que fariam coisas diferentemente. O que não contam é que há sempre o lado nem tão bonito assim – e que coisa estranha essa de se extrair beleza do leito de morte alheio. A morte nos reencaixa nos eixos quando sentimos seu bafo e seu mau hálito. “Eu vi a cara da morte, e ela estava viva” disse Cazuza. Quem não vê a cara da morte não muda porque, bem, porque não mudamos a não ser que algo reestruturante demais nos caia sobre as cabeças, algo que possua significado pessoal e intransferível. Justificamos histórias dos outros para impulsionar desejos que já possuímos. São confirmações do possível, dentro da autodeterminação.

Esqueceram de contar que passamos a vida fazendo escolhas. Decidir por A é necessariamente não decidir por B. No fim da vida, todos colocamos as coisas em uma perspectiva diferente. A finitude exclui o planejamento; tudo é passado. As escolhas que fizemos serão sempre questionadas, não importa quais sejam. A alternativa escanteada possui o selo eterno da perfeição, ainda mais quando confrontada com a hesitação da decisão tomada. Podemos assimilar, assim, que “passar mais tempo com os filhos” seja tão possível de ser balbuciado quando da hora final quanto “ter dado uma vida melhor aos meus filhos”.

Não se refaz a história; no máximo fugimos, varrendo-a para debaixo do tapete. Melhor é ir-se com a confiança de ter feito o que era possível.

O mesmo vale para quem prolonga a estada neste mundo sem sentido. A forma como nos lembramos de quem se foi cabe somente a nós mesmos. E existe uma escolha sobre como esta lembrança será armazenada.

Escolhi a certeza de que vivemos a vida que foi possível termos vivido. Esta é a única contabilidade potencialmente justa.

Esta escolha aplaca e acolhe todo o resto. Transforma a dor em saudade e em sorriso. Fagulha em neurônios, reativando memórias esquecidas. E pavimenta a estrada, preparando-a para que caminhemos sempre juntos, eu e ele, não como peso ou fantasma, mas como companhia indispensável, porque ele é parte fundamental de mim.

Amei-o com toda a plenitude que poderia.

Ele faz falta.

E tenho profundo orgulho da pessoa que ele era, da relação que construímos, e de quem eu sou hoje também por causa dele.

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