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O sonho não acabou

O sonho não acabou

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Fim de festa. Aquele cheiro salobro de cerveja quente apodrecendo o ambiente, piso grudento de sujeira, pilhas de louça para lavar, o mundo para arrumar. A bebida consumida um ou dois degraus acima do recomendado a maltratar o juízo. Na nossa cabeça, uma inércia paralítica provocada pela frustração, pela decepção e pela adaga afiada da realidade que pede para ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto que ela está voltando.

Torcer é o auto-engano disfarçado de esperança. Peguei-me durante a partida apostando num atraso de sinal, numa distopia entre a imagem na minha TV e os fatos que chegavam da Rússia. Se um ataque era negado aqui, me ligava na reação do alheio pela janela torcendo por um desfecho diferente, como se fosse uma pegadinha de mau gosto feita exclusivamente para mim. Ó, universo, menino travesso, que fiz eu? Mas nada é nada, nada fiz e nada de brincadeira tinha. Tal qual via, assim era.

Confesso que torci. E muito. Só que, apesar do meu desmantelo e da minha orientação, no escanteio para a área, relógio ainda em aquecimento, o gol contra do para-sempre-amaldiçoado Fernandinho fez tchan. Na reprise do contra-ataque de almanaque orquestrado contra o Japão, eu apontando o que tinham que fazer como se da minha sala minha voz chegasse no pé do ouvidos deles do lado de lá, o tirambaço de De Bruyne fez tchum. No apito final, o empate que não veio e tchan, tchan, tchan. Acabou o sonho do hexa na Rússia.

Uma Copa do Mundo vai muito além do resultado, mais do que futebol. Mexe com simbologias únicas, que fazem sentido somente no âmbito individual. A questão não é ganhar, é viver a Copa. Aproveitar ao máximo o que ela significa, o que ela representa. Para usufrui-la não existe fórmula certa 7-passos, ou essa matemática autoritária e tola de pode ou não pode, de deve ou não deve. Existe, tão somente a paixão e o querer.

Lembro-me do garoto da capa do Jornal da Tarde de 5 julho de 1982, quando Paolo Rossi enterrou o escrete mágico de Telê Santana. O país chorou, e se viu inteiro ali na imagem que era só paixão e frustração e tristeza.

Os anos passaram, o esporte com um quê de amador se tornou profissional, movimentando cifras bilionárias. Mas a paixão, amigos, ela está ali, adormecida ou ativa, nunca morta. Lidamos com a perda de diferentes maneiras. Aprendemos a nos defender das agruras da vida como podemos. No entanto, penso que endurecer-se para o que uma vez nos despertou tanto sentimento é algo um tanto triste. Não posso me permitir que isto aconteça, ou pelo menos tentar evitar no máximo de minhas capacidades. Abster-se de emoções que nos apaixonam não é coisa boa, tanto pelo contrário.

Na esteira da derrota consumada para a forte Bélgica, não teremos mais o feriado prolongado da terça-feira, os encontros obrigatórios com os amigos, todos vestidos de amarelo, o ufanismo das transmissões passando por cada canto do Brasil, mostrando que podemos, sim, ser um. A rua vai voltar ao normal, as decorações serão guardadas – como acontece em aniversários, no São João, no Natal, no Ano Novo, em qualquer época de celebração. Mas, absurdo dos absurdos, diferente das irmãs festeiras com dia e hora marcada, a Copa é de quatro em quatro anos e sem se saber ao certo quanto tempo dura.

Assimilo, com viés de desolação, que a dor maior não é da derrota em si, porque perder faz parte do esporte. Não houve humilhação, porque aí atribuiríamos o desprazer à honra lascada pelo resultado fatídico, tal qual 2014. Sem muletas para nos escorarmos, a dor vem do fato de que a realidade, mesmo deixada de lado, retorna. O fim de festa sempre vem. O que não nos impede de admitir que queríamos a fuga por mais um tempo, porque o prazer é libertador.

O que será então da próxima terça-feira, senão mais um dia comum na vida de todos nós? Algo insossa, sem surpresa, sem inesperado, sem magia? Ora, de terças-feiras ordinárias estamos fartos! E chego a ter pena de quem proclama ao vento que se recusa a viver intensamente a delícia que é este tal do futebol.

Pois, sim, concluo que o sonho do hexa, por hoje, ‘tem, mas acabou’. Amanhã volta. Só que esse amanhã dura longos quatro anos. Foi, digamos, apenas adiado, empurrado com a barriga. Vai ser guardado no porão da memória, cabendo a nós resgatá-lo, limpá-lo e exibi-lo como nosso. Seremos, quando lá no Catar, que está mais para ‘bem pra lá’ do que para ‘logo ali’, os mesmos de agora, contagiados, mesmo que tardiamente, pelo clima de Copa, torcendo pelo Brasil, cantando o hino à capela, reunindo a galera, vestidos de amarelo, rindo, chorando, cornetando, se divertindo e torcendo secretamente para que o mundo se acabe em fantasia.

* Gabriel Galo é escritor.

Crônica publicada no site do Correio da Bahia em 06 de julho de 2018. Link AQUI!

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