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Os prédios em Salvador interfonam histórias que teimamos em ignorar

Os prédios em Salvador interfonam histórias que teimamos em ignorar

por André Uzêda

Fortaleza colonial, cemitério de povos originários, tablado renhido de inúmeras revoltas sociais, Salvador descuida de toda crônica que não seja oficial ou folclorizada em seus próprios ditames. Para cada Vila Caramuru, plenamente gentrificada, há uma Iara Iavelberg ou Ruth Cardoso silenciadas em esquinas banais.

A história da cidade no século XX, ironicamente o período de advento de novos meios de comunicação de massa e (imagina-se) maior circulação de informação, não alcança todos os habitantes contemporâneos ou de gerações próximas. Fora do circuito dos casarões históricos há uma série de prédios, muitos ainda de pé, que contam episódios insólitos da nossa biografia, mas foram acometidos pela mordaça da cruel desmemória.


Edifício Jaguaquara, Barris

com a Rua Rockfeller, nos Barris, a tabelinha anacrônica entre o mercenário francês e o magnata do petróleo americano indica, na prática, o fim do gasto asfalto para uma caminhada sobre tortos paralelepípedos. Ao fim da andança, em uma rua sem saída, avista-se um prédio rosa, de nome Jaguaquara, morada de uma assombrosa personagem, que faria Hollywood entumecer por um roteiro de série.

Ruth Volk Cardoso nasceu em Belmonte, no sul da Bahia. O pai era dono de extensas fazendas de cacau e a mãe, dona de casa, alemã. Aos 35 anos, se tornou a primeira brasileira a ganhar o título de mestre internacional de xadrez feminino. Bonita e charmosa, entre seu nariz afilado e olhar exultante, combinava classe e elegância. Representou o país cinco vezes nas Olimpíadas da categoria, conquistando a medalha de prata em 1972, em Escópia, na Macedônia.

Além da trajetória como atleta, ajudou a disseminar a prática de xadrez no estado, sendo fundadora – com direito a assinatura na ata de criação –  da Federação Baiana de Xadrez (FBX), em 1960. Ainda na primeira infância, Ruth acompanhou os pais em mudança de mala e cuia para a Alemanha, na perspectiva de uma vida mais próspera. O erro de cálculo foi desastroso.

Pouco tempo depois, em 1939, seria deflagrada a Segunda Guerra Mundial, com os peões de Hitler invadindo o território da Polônia e, em sequência, deflagrando ataques simultâneos por toda Europa.

A família Volk, braço materno de Ruth, era de origem judia. Ela foi levada para o campo de concentração nazista, juntamente com a mãe. Lá, sofreria com as barbaridades do Holocausto, carregando sequelas definitivas que comprometeriam um dos seus pulmões. Por terem cidadania brasileira, com extremo esforço e uso de relações políticas, mãe e filha conseguiram fugir dos horrores do campo de concentração.

De volta ao Brasil, construiria sua carreira de sucesso e glórias no tabuleiro. Morreria em 2000, no prédio Jaguaquara. Absolutamente nada por lá remete à sua trajetória sublime.

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Edifício Santa Terezinha, Pituba

Numa vizinhança com pizzaria, restaurante mexicano e salão de beleza, um atarracado prédio de três andares, na Rua Minas Gerais, na Pituba, à primeira vista, não desperta muita atenção.

O edifício Santa Terezinha, no entanto, desnuda uma das histórias mais dramáticas e viscerais do Brasil durante os sangrentos anos da ditadura civil-militar (1964-1985). Lá, foi brutalmente assassinada a revolucionária judia Iara Iavelberg.

Nascida em uma rica e tradicional família de São Paulo, casou-se aos 16 anos. Três anos depois, mesmo com o forte estigma da época, separou do primeiro marido e mergulhou na militância política, ainda como estudante de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Em abril de 1969, conhece o capitão Carlos Lamarca, que havia desertado do Exército e passado a combater os próprios milicos por meio de guerrilhas armadas. Eram os anos de chumbo no país. O Ato Institucional número 5 (AI-5) havia sido imposto em dezembro do ano anterior, cassando os direitos políticos, as garantias constitucionais e fechando o Congresso Nacional. A partir dali, a tortura seria usada como instrumento contumaz para arrancar confissões dos considerados inimigos do regime.

Em 1970, perdidamente apaixonados, Lamarca e Iara integravam a célula revolucionária MR-8 e viviam nômades para fugir da repressão. Entre tantos destinos, nos anos derradeiros, vieram para a Bahia, mas passaram a viver em cidades diferentes. Ele, em Brotas de Macaúbas. Ela, em Feira de Santana, depois no aparelho da Pituba, em Salvador.

No dia 20 de agosto de 1971, agentes do DOI cercaram todo o quarteirão da Rua Minas Gerais. Lançaram bombas de gás lacrimogênio no prédio Santa Terezinha, até que os primeiros militantes do MR-8 deixassem o apartamento e se entregassem.

Iara não se entregou. Conseguiu fugir do apartamento 201 para o 202, saltando por um vão. A fuga, porém, foi frustrada por um menino que avisou aos meganhas que havia uma mulher no banheiro de serviço do seu apartamento.

Um tiro foi imediatamente disparado e acertou Iara na altura do peito esquerdo. Nos dias seguintes, a falsificação do regime sustentou (com direito a perícia fraudulenta) que a revolucionária havia atentado contra si própria para evitar ser capturada com vida.

ser judia, foi enterrada em São Paulo numa área destinada aos suicidas e, como manda a tradição, com os pés voltados para a lápide, em sinal de desonra. Somente em 2003, após intensa batalha e processos judiciais para provar o crime do estado, os restos mortais de Iara foram exumados e postos no mausoléu da família.

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Muitas andanças, tantos esquecimentos

Caminhar atento pelas ruas da cidade é conhecer tantas histórias que compõe o cabedal de narrativas que nos ampara.

No Lobato, há o lugar exato onde, pela primeira vez, encontrou-se petróleo no Brasil; na Graça, na rua da Flórida, um prédio foi construído sobre os escombros de uma antiga mansão, palco de uma chacina familiar; na Rua Waldemar Falcão, em Brotas, duas escolas, uma do lado da outra, levam o nome de Conselheiro Luís Viana e Manoel Vitorino. Em vida, os dois políticos se odiaram amargamente e, por pirraça, alguém inventou de colocá-los um do lado do outro para continuarem se odiando entre concretos e alicerces.

Os prédios de Salvador interfonam histórias. Na hora de atender o toque, deve-se ignorar o que vem do elevador social, burocrático, administrativo. A vida acontece da rua para dentro de casa.

* André Uzêda, 33 anos, jornalista e mestre em comunicação e culturas contemporâneas. Atualmente é editor da TV Bahia e colunista do Correio (coluna Baianidades). Antes trabalhou no Jornal A Tarde, Folha de
S.Paulo e TV Aratu.


Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021, páginas 62 a 65.


Capa da Papo de Galo_ revista #14, de 28 de março de 2021.

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