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Painho

Painho

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Coisa de paulistano de nascença, que apesar de muitos mais anos vividos em Salvador, não abandonava o sotaque, resistindo bravamente ao cantado e belíssimo sotaque soteropolitano. Talvez houvesse um certo provincianismo, de pensar na megalópole sudestina como centro maior, o que economicamente é correto, mas humanamente, tenho cá minhas dúvidas. Apois, era eu chamá-lo de painho que ele franzia a testa, demonstrando, às vezes com palavras, que não gostava da alcunha.

Mas, fazer o quê? Se na cidade todo mundo era d’oxum, havia de se entregar a forças maiores do que ele. Painho era, painho ficou, até que, depois de velho, eu adulto, não retrucava nem encaretava a face. Era, enfim, painho.

Não era pessoa fácil de conviver. Como ouvi certa feita sobre outra pessoa e levei para resumir suas relações, era excelente para consumo externo. No dia-a-dia, tinha suas questões que desafiavam o querer bem, confesso.

Agora, que pai não? Que relacionamento duradouro não impõe desafios cotidianos?

Aprendi com os anos a aceitar o pai que eu tive. E, aos poucos, pude perceber certos privilégios.

Porque apesar da obviedade de não querer ser pai, pelo menos não nos modos de pai participativo que divide as responsabilidade com a mãe e concorda com contratos sociais que moldam as interações especificamente relativas à paternidade e ao matrimônio, eles ficou ali até quando pôde.

Este é, talvez, o maior privilégio.

Porque ele quis ir embora muitas vezes. Não servia praquilo de criar filho. Abusava de violência física para extravasar frustrações que se acumulavam com uma vida sofrida, de constantes dificuldades financeiras. Mas ele ficava.

Ficava mesmo contra o não querer de minha avó, que repelia qualquer nora, de qualquer dos 5 filhos.

Até meus 20 anos, eu já na faculdade, os 3 filhos crescidos, permaneceu, mesmo que nos últimos tempos estivesse mais fora do que dentro.

Mas ele ficou. Ele ficou, bicho. Esteve presente, do seu jeito. Lutou, o máximo que pôde, para prover educação de qualidade, ou seja, particular, a mim e a meus irmãos, porque sabiam, ele e Mainha, que não haveria futuro se assim não fosse, mesmo que tivessem que sempre viver na corda bamba.

Entende o poder que isso tem? Entende o que isso significa?

Sou, pois, privilegiado.

E não é questão de me contentar porque poderia ser muito pior, porque  ‘tem gente que vive realidades piores”. É claro que poderia ser muito pior. Só que, perdoem-me, eu não caio na armadilha de comparar fatos a hipóteses.

É questão, pois, de aceitação da condição que eu tive. De abandonar o que poderia ter sido, de corrigir na mente os erros cometidos pelo caminho, e focar no que efetivamente tem de palpável. A história que vivemos, com coisas boas e coisas ruins, como todos nós.

Prefiro, então, focar no que foi.

Por vezes, cometerei o deslize de pensar no que talvez fosse, mas não como um efeito borboleta de correção do passado, e sim como divagação, como construção narrativa, como desabafo.

Painho se foi em 25 de agosto de 2016.

Cedo demais. Talvez não pra ele, que, hoje prefiro compreender assim, cansou de tudo e atuou, talvez não conscientemente, para descansar.

Nesta edição da Papo de Galo_ revista, vou falar da nossa relação, que cabe somente a nós dois.

Além disso, vou trazer alguns de seus textos de que mais gosto.

Porque Painho era um escritor de mancheia, embora frustrado, como sói ocorrer àqueles que desejam a arte. Nunca conseguiu se dedicar à escrita como gostaria.

Tinha um sonho que desconhecia. Confessou-me Angelica, sua esposa em seus últimos 9 anos de vida, que ele tinha uma vontade enorme de se tornar cronista na Bahia, especialmente sobre futebol.

Quando em 15 de maio de 2017 escrevi o meu primeiro artigo como colunista do Correio da Bahia, estava ali realizando um sonho que era também dele, senão mais dele. Para sempre terei esse vazio na minha vida: de ter chegado a um ponto com o qual ambos sonhamos, mas ele não teve a oportunidade de ver, de acompanhar, de criticar, de saborear.

E isso, meus caros, dó demais.

Dele herdei legados.

O tique de coçar os cabelos.

As amizades, tanto de ETFBA quanto de UFBA.

O gosto musical.

O humor ácido.

O amor pela escrita e o anseio por escrever.

A capacidade de articulação argumentativa.

Uma certa prepotência de crer demais na própria capacidade, sem dar-se conta da importância incontornável da execução, mesmo que de tarefas chatas.

A vontade de fazer os outros passar vergonha com demonstrações públicas de “pra quês?”. Quem nunca teve um pai que se dispõe a fazer embaraçosos alongamentos em locais tão propícios quanto supermercados, nunca saberá o sentimento.

A lascívia por largas ancas femininas – perdoem-me, nem tudo é nobreza.

E, sobretudo, da paixão pelo Esporte Clube Vitória, tradição iniciada por meu avô, que hoje se expande à quarta geração.

Fui forjado no cimento da arquibancada da Fonte Nova e do Barradão, com ele na maior parte das vezes. Vimos as semifinais e final do Brasileiro de 93, estávamos lá no gol de Raudinei, fizemos do Barradão nossa casa em barro e lama a partir de 95.

O Dia dos Pais é data que não vem sem um pouco de dor. Sua ausência é sentida com mais força. Coisa de certas datas emblemáticas, como aniversário, e data de sua morte, que completa 4 anos neste mesmo mês de agosto.

Esta parte da revista é uma revoada de histórias dele, com ele, pra ele, sem platitudes de roteiro de propaganda, com verdade, emoção, alma.

Painho já não está mais aqui, mas devo ainda lutar para que sua voz permaneça. Para que nossas histórias ainda vivam, e nelas ele também.

Painho é parte fundamental de quem eu sou.

Feliz Dia dos Pais, Painho. Amo você.

Que saudade.


Editorial publicado pela primeira vez com exclusividade na Papo de Galo_ revista #8, páginas 6-8.


Capa da edição #8 da Papo de Galo_ revista sobre o Dia dos Pais.

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