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Pra que serve o belo?

Pra que serve o belo?

Manoel de Barros dizia que a poesia não servia para nada, que era a virtude do inútil. “O inútil só serve para isso mesmo, para a poesia,” disse ele no único documentário que topou fazer sobre si, avesso que era ao mundo das câmeras.

Numa extensão, para que serve o belo, se inútil ele for? Retomo as palavras do mestre mato-grossense, e afirmo, sem medo de errar: o belo possui fim em si mesmo e é transformado em virtude quando apalavrado em poesia. Não há finalidade funcional, ora, pois.

É porque é, e não seria se assim não fosse.

Na infância, o máximo do baba, na pelada no meio da rua com traves de chinelo ou algum tijolo, não era o gol. Era o banho de cuia, também conhecido como lençol ou chapéu. Uma bola no meio das pernas era motivo de algazarra. Ao executor da humilhação estava construído o pedestal do sucesso. Ao sofredor, a certeza de abusos e zombaria.

Quando moleques o ápice era, portanto, o belo. Gol era comemorado se de placa. De calcanhar, driblando todo mundo, pegando um chute na veia de longe. Gol mais ou menos era o anti-clímax: deveria ser comemorado, mas desperta uma certa frustração. É o desperdício pela a chance jogada fora da glória que uniria o belo ao apogeu do ludopédio.

Instituiu-se, infelizmente, a ditadura do resultado: o que vale são os 3 pontos. Brucutus são exaltados enquanto ídolos enquanto o refino por vezes contraproducente está fadado às injúrias das arquibancadas.

Amigos corintianos não lembram de muitos jogos da campanha quase invicta do Brasileiro de 1993, mas lembram com precisão do gol de Alex Alves na Fonte e do de falta de Roberto Cavalo com ajuda do goleiro Ronaldo no Morumbi. Você quase certamente não lembra do placar do jogo entre Palmeiras e São Paulo, mas sabe de qual gol do Alex com chapéu no Rogerio Ceni estou falando. A memória falha em lembrar a situação exata de André Catimba, mas sua parada no ar e queda de barriga no chão foi eternizada.

O belo serve para o encantamento. Exige-se sutileza para deixar-se embasbacar e se entregar ao deslumbramento, de preferência boquiaberto.

Sugiro, assim, que enxerguemos o futebol com o ponto de vista do garoto jogador de bola. Crio uma pontuação diferente para definir a quem estaria fadado o caminho da glória.

Gol roubado na intenção, menos 2. Aquele com toque de mão, com fingimento, por exemplo.

Juiz marcou pênalti, xibungo fez o gol mas não foi falta? Menos 1.

Atacante que perdeu gol feito contabilizaria menos 0,5 ponto na tabla.

Gol feio? Vale nada, nota possível pelo anti-clímax provocado.

Um chapéu valeria 1 ponto. Uma bola no meio das pernas, 0,5. Um drible espetacular, 0,75. Se tiver falta na sequência, pela alegria do desfecho desonroso, bônus de 0,25.

Aquele passe em profundidade, improvável, que rasga a defesa, somaria 0,25, igual uma matada no peito com classe, um lançamento de mais de 30 metros no pé do companheiro.

Bola na trave passaria a alterar o placar, e só pela possibilidade de criar tantas discussões e resenhas baseadas em “ses” – se a bola entra, se a gente faz aquele gol, etc. – vale 1,5 ponto com direito a uma gelada de acompanhamento. É mais ponto até que o gol comum, que continuaria valendo 1 a favor.

Golaço valeria uns 3 pontos. No mínimo.

Talvez fique mais complicado de fazer a matemática, mas a intenção é exatamente essa. Que na dificuldade seja enterrada essa nova noção que “o que importa é o resultado positivo e fazer o que o professor mandar, com muita garra e fé em Deus para dar alegrias para essa torcida.” O ganhador será a equipe que mais arrancar sorrisos, palmas, loas e cânticos do público, sendo que criança tem peso 2.

Quem ligaria para o resultado? Espero que ninguém.

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Esta crônica foi uma homenagem ao belíssimo gol de David, o segundo do Vitória na derrota para o Palmeiras ontem no Allianz Park. Carregado de inutilidade em resultado, mas cheio de significado quando exaltado o que belo. Com direito a matada no peito, chapéu, passe em profundidade e golaço. Marca 5 pontos pra ele, seu juiz, no mínimo!

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Esta crônica também foi inspirada no texto de mestre Paulo Leandro, que embelezou palavras hoje no Correio.

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Meus artigos para o Correio você pode ler aqui.

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