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(Quase) Toda fantasia é permitida

(Quase) Toda fantasia é permitida

As Muquiranas, Salvador, carnaval, bloco, fantasia

Afinal, o que é mesmo o Carnaval?

Na sucessão da história, muitas são as teorias de como começou. Alguns atribuem a Dionísio, deus da Mitologia Grega, transformado em Baco na versão Romana. Outros atribuem às saturninas romanas, celebrações ao Cronos romano. Já os que querem empurrar mais para trás, chegam a Ísis no Egito Antigo.

Apesar das inúmeras origens possíveis, eventualmente uma combinação de todas elas, uma característica é comum: a subversão. Estabeleceu-se a época de brincar com as convenções sociais estabelecidas. De colocar as coisas de pernas pro ar, de cabeça pra baixo. De inverter a lógica. O contexto histórico diz respeito ainda a mais três aspectos: a forte presença do vinho na desinibição (ah, Baco…), às fantasias e às máscaras, referências ao teatro grego ‘criado’ por Dionísio e a entrega aos prazeres da carne. E num lindo encontro entre analogia e literalidade, carne serve para a pele (a libido exacerbada, afinal, bebida para quê?) e para a entrada na quaresma, quando a carne literal estaria abolida das dietas.

Carnaval é, portanto, a redenção da carne, a extrema sensibilidade da libido, a troça do convencional. Posso ser, no Carnaval, o que não sou. Com um objetivo único: divertir-se.

No que muitos, estimulados pelo infame vídeo recente do Catraca Livre, resolveram dar vez e voz aos seus próprios preconceitos e intolerâncias. Sentem-se protegidos por estarem do lado ‘certo’ e desapercebem-se de suas próprias incoerências. Surgiu assim uma figura tão patética quanto infame: o patrulheiro do Carnaval.

O patrulheiro do Carnaval existe para encontrar pelo em ovo. Está condicionado para problematizar absolutamente tudo o que encontrar pela frente. Sem lógica, apenas porque sim. Homem vestido de mulher? Ofensa machitas às mulheres trans. Índio? E o genocídio que eles sofrem? Cigano? Muçulmano? Apropriação cultural e reducionismo estereotípico.

Deturpam conceitos, cometem erros infantis. Apropriação cultural diz respeito a um grupo assumir como propriedade um aspecto cultural de outro grupo. Não é um branco usar turbante, é branco dizer que turbante é de sua cultura, não da outra. Há muita diferença, desconhecida dos provocadores da infâmia. Argumentam que há reducionismo de uma cultura a uma vestimenta. Ora, não é uma fantasia, pombas? Além do mais, esperam o quê? Um livro de apresentação histórica de um povo – veja bem, apesar da fantasia, conheço tudo desta gente – com comentários do Chico Pinheiro? Ora, por favor! E já que a onda é botar do avesso, não seria um homem vestido de mulher tão somente uma subversão, uma inversão do que ele é? O que haveria de ser mais oposto biologicamente ao homem do que a mulher?

O exagero desta gente encontra eco nos odiosos verdadeiramente preconceituosos. Saiu de mulher? Obviamente ou é bicha enrustida, ou homem que bate em mulher ou uma mistura dos dois. Safadinho? Putanheiro viciado em pornografia. Estes, sim, são aqueles que deveriam ser combatidos no Carnaval: a tal da gente de bem que prega a extinção da alegria. Para eles, a culpa incutida é o verdadeiro deus.

No fim, pode (quase) tudo. Porque os odiosos, os preocupados com a lacração, os patrulheiros, infelizmente, não deixarão de existir. Eles sonham com Carnavais do Crivella, com música amena, sem excessos, tudo controlado e monitorado. Imaginam, talvez, até carnavais sem Carnaval. Ou seja: são virtuosos da chatice. Afinal, não podemos dizer que os que não se fantasiam estariam presos por correntes e grilhões à realidade, de tal forma abduzidos que não são capazes de pintar um outro cenário? Para a patrulha do alheio, somos ou prisioneiros ou preconceituosos. Não tem pra onde correr: se correr o bicho pega; se ficar, o bicho come. A questão é que Carnaval não aceita vigília. Na cultura do meu-umbigo-é-o-mundo, é inconcebível para os infelizes que uma fantasia de carnaval tenha como objetivo maior a diversão.

Ademais, proponho uma outra pergunta: será que nos fantasiaríamos do que odiamos? Certamente não. Nos carnavais de por aí, prefiro os fantasiados. Quanto mais escrachado, melhor. Estão eles ali (homens, mulheres e combinações) honrando as mais antigas tradições do Carnaval: bebida, putaria e fantasia. Saíram para se divertir, e ponto final. Carnaval É fantasia.

Problematizar o Carnaval: tô fora. Guarde sua agenda, não se crie. E um beijo no ombro, pro recalque passar longe.

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