Lendo agora
Questão de identidade

Questão de identidade

ensaio, papo de galo, revista, identidade, Gabriel Galo,

A manhã de quinta-feira, dia 11 de junho de 2020, amanheceu habitualmente fria e com neblina em Santana de Parnaíba, cidade na região metropolitana de São Paulo. O seco quase inverno paulista garante dias quase iguais.

Mas aquela quinta-feira de 11 de junho tinha tudo para ser diferente.

Corpus Christi é evento para o qual os moradores se preparam e se enchem de expectativas. É tradição na cidade, que tem um orgulho um tanto torto de ser o berço dos bandeirantes, que no dia de Corpus Christi as ruas do Centro sejam enfeitados por um tapete feito de serragem. O esforço é coletivo. Partições do tapete são destinados a fieis para que estes pintem as imagens bíblicas e mensagens que lhes aprouverem.

O resultado é belo e atrai muita gente, que se aperta no que resta de rua e calçada para ver os desenhos. Nas ruas anexas, barracas de comida, restaurantes lotados, ambulantes aproveitam para descolar uns trocados.

No fim da tarde, uma procissão liderada pelo padre da Igreja Matriz caminha sobre a arte, celebrando a eucaristia, se alimentando das imagens no tapete, transubstanciando símbolos para que cada um no caminho se torne efetivamente sangue e corpo de Cristo.

Mas a manhã daquela quinta-feira amanheceu tal qual uma terça-feira qualquer do quase inverno paulista. Nas ruas não se assistia e se ouvia o burburinho dos artistas da madrugada, finalizando suas obras e vendo o crescer do fluxo de gente para que, enfim, descansem com a tranquilidade do dever cumprido e a segurança confortável do senso de pertencimento.

Na fria e enevoada manhã de 11 de junho de 2020, um elemento crucial da identidade de toda uma gente foi extirpado. E assim a pandemia prolongada vai provocando sequelas para além do físico e da saudade: vai nos minando a identidade.

E talvez não haja evento coletivo mais símbolo e apoteótico para o brasileiro que o Carnaval. Reduzo a dúvida à afirmação inequívoca: sim, São João é mágico, tem gente que não gosta de ajuntamento, a Folia de Reis e as festas de boi têm valor simbólico superior em rincões do Brasil, cidades se especializam em intensificar festas de largo ao gosto do que estiver à mão, mas nada tem as proporções de números, imagem e relevância do Carnaval.

Quando se contrapõe esta realidade aos anseios moralizadores e limitantes que o atual  governo busca impor ao brasileiro, construindo um ideal profundamente racista e retrógrado de povo teocrático, é de se alarmar os desdobramentos da visão fúnebre quando vagamos, almas penadas, pelas ruas que uma vez contiveram a alegria e a subversão em seu ponto máximo.

Estaríamos, pois, vivendo sob a regência de quem impõe um regramento de violência identitária militar, que age para quebrar o espírito individual e forçar a rendição de um ser oco, que vai buscar o preenchimento nas verdades incontestáveis do alto comando da nação.

Como afirmou meu amigo, o jornalista Alexandre Lyrio, entusiasta das festas populares, “não faz sentido algum existir sem poder festejar o fato de estarmos vivos.”

A morbidez da pandemia propositalmente descontrolada faz com que, além do espírito individual quebrado e da identidade coletiva surrupiada, está no fato de que celebrar o fato de se estar vivo agora, quando centenas de mortos caem, parece insensível demais.

O alento, se possível, vem da própria história.

Desde sempre, vivem-se tentativas de repressão de expressões populares em via pública. E invariavelmente, encontra-se um jeito de burlar a opressão. Invariavelmente, a catarse coletiva não pode ser contida. Enquanto houver brecha, há possibilidade.

Lá na frente, se ainda formos na individualidade, seguramente voltaremos a existirmos no sentido de celebração incontida da vida.

A alegria voltará.

Eventualmente sem a pompa de antes, porque a escassez de recursos provoca ajustes.

Mas a explosão será promoverá a retomada dos novos tempos, num Big Bang redefinidor do universo. Para quem duvida do tamanho do impacto, notícias do pós-gripe espanhola de pouco mais de 100 anos atrás mostrou como o sentimento represado pode descambar para a baderna.

Mas Carnaval não é exatamente isso? Nos soltamos na mesma medida da pressão das amarras que nos prendem à ditadura do cotidiano.

Renasceremos, pois, na retomada da sanidade, quando tudo o que se faz realidade será deixado de lado quando fevereiro chegar.

Canta a música dos Los Hermanos que todo Carnaval tem seu fim.

Até então, esta afirmação partia do princípio que sempre haveria Carnaval. Vivemos neste 2021 o baratino de ver que nem todo Carnaval tem seu começo.

Ah, Carnaval…

Você vai voltar, eu estarei lá, os meus estarão lá comigo, e poderemos, em conjunto, na união em transe, remontar os resquícios das identidades quebradas, adicionando pedaço a pedaço para a completude do ser se faça novamente fato.

Até lá, lidarei como puder com sua ausência, lutando bravamente para não me render de espírito quebrado aos desmandos de quem o vê como entretenimento sem sentido, preservando sua raiz em minh’alma. Só assim poderei reconstrui-la.


Artigo da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 13 a 16.


Carnaval, Papo de Galo, revista, Gabriel Galo,
Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

Assine nossa newsletter!

Conteúdo exclusivo e 100% autoral, direto no seu email.


Contribua!

Antes de você sair…. Tudo o que você lê, ouve e assiste aqui no Papo de Galo é essencialmente grátis. Inclusive o que escreve em outros lugares vêm pra cá, sem paywall. Mas vem muito mais pela frente! Os planos para criar cada vez mais conteúdo exclusivo e 100% autoral são muitos: a Papo de Galo_ revista é só o primeiro passo. Vem por aí podcasts, vídeos, séries… não há limites para o que pode ser feito! Mas para isso eu preciso muito de sua ajuda.

Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade.

Livros!

Ah! E tem também os meus livros! “Futebol é uma Matrioska de Surpresas” (2018), com contos e crônicas sobre a Copa do Mundo da Rússia, está em fase de finalização de sua segunda edição. Além disso, em dezembro de 2020 lancei meus 2 livros novos de contos e crônicas, disponíveis aqui mesmo na minha loja virtual: “A inescapável breguice do amor” e “Não aperte minha mente“.

Apoie: assine a Papo de Galo!

Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.


Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.