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Sovaco

Sovaco

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Os anos passam, a humanidade sai das cavernas para morar em lofts com varanda gourmet, mas o mistério do sovaco permanece intacto. Há grande injustiça com esta tão importante parte do corpo humano. Em muitas vertentes, diga-se.

Por exemplo, na língua falada. Criou-se variações do tradicional sovaco, que é dessas palavras que não se sabe se é com “o” ou com “u” – não citarei exemplos práticos porque o horário não permite. Para adicionar um tempero, o “v” virou “b”, e até o “o” do final transformou-se em “a”. E tudo é certo, como não? Sovaco. Suvaco. Sobaco. Subaco. Subaca. Palavra tão rica se juntou ao panteão do popular e suas bassouras, os bizorros, o estrombo, a gengiba, o vareia, o pogresso.

Além da multiplicidade do vocativo, é também coisa de dar pena, ora, o tal do sovaco. Virou símbolo de mal cheiro. Quando você ouve “cheiro de sovaco” não imagina um campo florido de lavandas, mas sim um trem lotado sob um sol de 45 graus e com ar pesado de gambá em defesa. É questão de geografia. Constantemente em movimento e com pelos a proteger a região, o sovaco acumula tudo, proporcionando um odor que beira o absolutamente desagradável. Para isto inventaram um antídoto, o desodorante, mas que ainda não deve ser item da cesta básica, dada a quantidade de cheirinho e pizzas amarelas nas roupas que se espalham por aí.

Coitado do sovaco, é um incompreendido.

Nesta base, fui repreendido recentemente por uma amiga porque cometi o pecado de ter falado “sovaco” na frente de sua filha de 2 anos. Cada um é conjunto de suas idiossincrasias – de perto somos todos loucos – e não serei eu a negar algo tão óbvio. Diz ela não gostar da palavra, que prefere axila. Pois afirmo que tivesse Javé chegado para Adão e Eva e dito “pode comer essas maçã tudo aí. É niua. Pega nada.” sequer uma teria sido pescada em pecado. Afinal, que graça teria?

Assim me senti:

Primeiramente, vesti a camisa do sovaco e seu histórico de preconceito. Não! Respeite-se o sovaco, minha comadre! Ao mesmo tempo percebi a limitação da camuflagem do sovaco e suas várias faces. Por mais que se tentasse, em ambiente de gente fina e elegante, essa raça de gente que joga bolinha de gude no tapete felpudo do condomínio e é criado à base de Danoninho de pera, sovaco não se cria. Muito menos suvaco. Subaca, então, não passa da porta. O tilintar de taças de champanha aceita tão somente axila. E olhe lá, “não venha me falar de coisas menores”, já diz o madamo, fazendo cara de nojinho e saindo da roda com ar superior.

Além do que, perceba o trauma que se fará na criança. Ao criar a axila, excluiu-se a possibilidade do diminutivo em parte exposta do corpo. Reduziu-se o sovaco a algo tal qual osso do corpo humano, cujos únicos diminutivos (falanginha e falangeta) são tentativas desesperadas de criar simpatia à causa. Não, axila não aceita diminutivo. Não existe a axilinha. Ninguém no recreio quer falar com ela. O dedinho, o joelhinho, a perninha, a boquinha, o narizinho, todos riem da cara da axila. A axila é a aluna mais velho que repetiu de ano, burrinha, a coitadinha. Ela tenta, mas não é da turma. “Tomou banhinho? Tá cheiroso? Lavou o bumbum? E a axila?” Veja como a última frase não se encaixa. Ela não pertence ali. Parece uma bigorna despencando desfiladeiro abaixo na cabeça do coiote.

Por consequência, injúria!, eliminou-se as cócegas. Cosquinha você distribui no pescoço, na barriga, na planta do pé, atrás dos joelhos, no sovaquinho (viu como o diminutivo é importante?). Nunca na axila. Lá se vão os dedos tremelicando passeando pelo corpinho da criança e ela se rindo pedindo mais. “Agora a axila!” grita a tal mãe, feliz. A criança para, olha sem entender, como haver alegria na axila? Automaticamente, os risos dão lugar a um semblante sóbrio, gargalhada se esconde como se fugisse da polícia. Alguém acende um charuto, um Wagner toca numa vitrola no canto, “infante, devemos nos arrumar agora pois teremos aula de etiqueta e disciplina.”

Que maldade, ó, que maldade!, surrupiar as cócegas de uma criança!

O pior, no entanto, é falar que não pode. Não diz que não pode que eu quero vezes três. (Eu teria engordado de tanto comer maçã. O paraíso seria a maçã.)

Bolei plano mirabolante. Um dia chegaremos na sala do espaçoso apartamento onde moram, de pasta de partituras nas mãos. Talvez estejamos, eu e ela, a criança, vestidos de fraque, prontos para a ópera. Será a epítome de treinamentos cansativos no ensinar de uma arte milenar e fundamental. Pediremos silêncio, todos observando atentos, “que orgulho!” Repousaremos a pasta sobre um pedestal, olharemos altivos para o nada diante de nós. Posicionaremos nossa mão direita sob o execrado ponto, e em movimentos rápidos e de baque potente, os braços erguem-se e retornam amassando a mão em posição de tapotagem, côncava cobrindo o orifício, em velocidade ritmada, dando voz à nossa obra-prima, nossa (percebam a finesse do trocadilho) ópera bufa, allegro ma non troppo:

– Prrrrr, prrrrr, prrrrr. “Sovaco!”

– Prrrrr, prrrrr, prrrrr. “Subaco!”

Serei expulso do paraíso, mas terá valido a pena.

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