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Tô me guardando para quando o Carnaval chegar

Tô me guardando para quando o Carnaval chegar

carnaval, Eduardo Galduróz, Aquele Galduróz, Papo de Galo, revista

Quem me vê higienizado e distante garante que eu não sei sambar.

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Menos dia, será de novo carnaval. As máscaras subirão aos olhos, deixando bocas livres para o canto e para o beijo. Todo não-viver será redimido. Rolaremos cães na sarjeta, abraçaremos desafetos. Um vagamundo será aclamado rei de toda gente. Alguém gargalhará, soará uma tuba, tocarão Caetano, a Mangueira passará e tudo vai ser Bahia e Pernambuco. Uma cornucópia, um desbunde, um não-se-conter.

Porque menos dia será de novo carnaval.

E menos dia não mais.

Menos dia, nossa poesia amanhecerá quarta-feira. Apressaremos na calçada, amassando o capim que nasce entre concretos, e o ônibus se atrasará. Um pouco, não muito. Desconhecidos não retribuirão nossos sorrisos, porque não sorriremos a desconhecidos. O relatório será entregue no prazo, uma vaga noção de utilidade nos aberrará o espírito.

Menos dia, será meio de ano, um domingo feriado. Não haverá volúpia nem cotidiano. Passará o ônibus, um tanto adiantado, Caetano cantará, um pouco desafinado, um vagamundo tentará dormir entre pedras. Estaremos desarmados, distraídos, quando, da parede que insistimos em não olhar, nossos mortos finalmente nos chamarão à fala. E o simples ato de estar vivo soará tão grotesco quanto um solo de tuba na quarta de cinzas.

Quanto uma aglomeração de pessoas que só têm em comum o fato de estarem sozinhas.

Conta Natalia Ginzburg que, terminada a segunda guerra, todos se tornaram poetas. A poesia se fazia necessária, era urgente colher os versos tanto tempo proibidos pelo fascismo. E a colheita foi tão larga, houve uma tal embriaguez de palavras, que, em certo ponto, elas deixaram de fazer sentido, e seguiram-se tempos de ressaca e desânimo.

Talvez seja assim.

Ontem, confinados, cantávamos e tocávamos instrumentos de nossas sacadas, com a sofreguidão de quem conta piadas em um velório, urgentes de vida. Amanhã, livres, cantaremos e tocaremos na rua, urgentes do próximo, enfastiados de mortes. Depois, essas mesmas mortes nos encontrarão: desavisados, nauseados, e dançaremos sambas absurdos,  festejaremos nossa intangível melancolia, enfastiados de nós mesmos.

Até que, menos dia, um solo de cavaquinho surja, e nos roube um sorriso besta, solitário primeiro, depois compartilhado, quem sabe. Até que do concreto da calçada nasça uma tímida flor amarela de carnaval.


Crônica para a Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 32 e 33.


Carnaval, Papo de Galo, revista, Gabriel Galo,
Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

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