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Todos têm uma história

Todos têm uma história

Eu me considero alguém de muita sorte. Por inúmeras razões, de genéticas ao acaso que coloca tanta gente boa no meu caminho. Mas a homilia aqui vai longe, mais precisamente à Grécia Antiga. Puxando Aristóteles pelo braço, distribuo o que dizia o danado, e vou parafraseando até os pensamentos, para que o que adiante faça sentido, especialmente para mim.

Refiro-me à moral e dignidade do trabalho. Segundo Aristóteles, para viver uma vida plena – ou seja, ser efetivamente feliz – a pessoa precisaria exercer ao máximo a sua virtude, um dom natural para alguma coisa, um destino programado. Era estar em acordo com a natureza e o que ela havia lhe proporcionado.

O bicho foi tão influente no que se refere à questão de virtude, que virou palavra. Às aspas:

“Aretê (do grego ἀρετή aretê,ês, “adaptação perfeita, excelência, virtude”) é uma palavra de origem grega que expressa o conceito grego de excelência, ligado à noção de cumprimento do propósito ou da função a que o indivíduo se destina.”

Pois muito bem. Ao mesmo tempo, Tio Tito – Aristóteles, na intimidade – entendia que havia duas pegadinhas nesta pregação toda. A primeira, o que chamo de primeiro grande funil, é o indivíduo sequer CONHECER qual sua virtude. Ou seja, a maioria de nós vive caminhando a esmo, cumprindo o regulamento. Nascer, crescer, reproduzir e morrer.

A segunda pegadinha, ou o segundo grande funil, é o indivíduo ter a possibilidade de praticar esta habilidade, usá-la e desenvolvê-la à excelência.

Seguindo dentro deste modelo, imagino um terceiro grande funil: o de ser útil a virtude e o detentor desta fazer dela seu ganha pão. Para isso, é necessário que seja enxergado valor naquilo a que o indivíduo se dispôs a desenvolver. É mais do que aceitável entender porque este terceiro item não havia nos estudos do grande pensador grego: o outro, e por consequência, a humanidade eram absolutamente inexistentes, ou melhor, irrelevantes. Toda a questão era voltada para si, para dentro. Não havia nem o desenvolvimento do conceito de igualdade, porque, claro, se a principal questão era o dom natural – a virtude – era um conceito de moral baseado na diferença. Somente pode ser válido como ser único, nunca como elemento de uma sociedade.

Muitos séculos depois, veio Kant mudar a regra do jogo, e dizer que a dignidade moral se baseava no trabalho: o quanto havia de dedicação e a que ele é empregado. Igualou-nos todos no conceito de igualdade na liberdade: somos todos livres para racionalmente decidirmos como aplicar nossos talentos.

(Muita filosofia para espaço tão raso… Simplifica, homem!)

Há um tempo, um amigo me perguntou “você quer ser escritor?” Respondi, pela primeira vez “Sim!” Fiquei um tanto surpreso pela facilidade e rapidez com que as palavras saíram de minha boca, acostumado que era a sempre diminuir a relevância da minha aventura.

Voltemos ao conceito, então, do que propagam as frases feitas de LinkedIn e livros de autoajuda: faça aquilo que ama e nunca mais terá que trabalhar de novo.

É assim como me sinto neste momento.

Extasiado por ter, de alguma forma, identificado algo que posso decifrar como talento e estar trabalhando para desenvolvê-lo. Passei pelo primeiro funil, estarei sempre no segundo – quem jamais haverá de graduá-lo? É perene, portanto. Quem acha que se formou tem para si a arrogância de excelência que nunca quero possuir –, e o terceiro chega apenas na junção do trabalho com o talento, quando Kant encontra Aristóteles, os outros – sendo os outros também você que lê agora estas linhas – são colocados na equação, e então, talvez ali, os portões do mundo se abram para sua marcha.

Mas mais do que isso: descobri algo que é tão divinamente prazeroso que toda a parafernalha construtiva e de labor é absolutamente secundária.

Apenas pela interação com tanta gente no meio desta cruzada, tudo já vale a pena. As pessoas que acabam cruzando o caminho são uma fonte inesgotável de alegria.

Todos têm uma história.

O garçom que com apenas 33 anos de idade está casado pela 13° vez; a técnica de enfermagem que largou tudo no Nordeste para ser dona de restaurante em Búzios, e de quebra ainda encontrou o amor; o francês que viveu uma tórrida história de amor com uma brasileira, abandonou o barco na Europa e veio para o Brasil em definitivo; da mãe que chora a ausência dos filhos num prédio em Botafogo e se consola nos ombros do porteiro; do senhor de 90 anos que corre para cima e para baixo, apesar da falta de ar; da mochileira catarinense que decidiu viver cortando o Brasil; do motorista carioca que se vê livre num Uber e que associa qualidade de vida a andar de bicicleta no pé de casa, olhando o mar.

Um recorte da infinidade de deliciosas histórias que nos cercam.

Cada nova conversa é um chacoalhão nos conceitos que carrego, que se veem despedaçados sem cerimônia.

Fiquei surpreso com a quantidade de gente que abdicou de toda uma vida prévia para seguir um novo rumo.

Coragem é sentimento compartilhado. Aproveito para pongar junto nesse bonde.

Vou solidificando a certeza de que meu papel é o de ouvir e contar histórias. Gosto da visão do que significa isso, uma espécie de Forrest Gump ativo, que, mais do que a sua própria, cria e sobrevoa o fantástico e o real, mais ou menos ciente do que se passa e como aquilo tudo interfere em seu próprio caminho, sempre aberto a novas transformações.

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