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Um fevereiro estranho

Um fevereiro estranho

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Peço desculpas pela delimitação da estranheza a apenas um mês deste 2021. Afinal, faz tempo demais que o sentimento geral é de estranheza.

Mas é que as válvulas de escape foram travadas, deixando um país sem opção de fugir da realidade rumo à fantasia e à esbórnia.

O absurdo da realidade fica mais palatável quando nos entregamos ao inverso, quando diluímos o sofrimento do real em dias de festa sem compromisso.

Diz a canção de domínio público imortalizado em vozes potentes como a de Maria Bethânia e de Dona Edith do Prato, num samba de roda baiano que tem ressonância direta nas cadeiras:

“Trabalhei o ano inteiro
trabalhei o ano inteiro
na estiva de São Paulo
só pra passar fevereiro em Santo Amaro”

Pois neste 2021 não teremos nem fevereiro, nem Santo Amaro.

Sem o Carnaval, resta apenas o cheiro terrível da realidade que une inflação, desemprego, aviso de despejo, insegurança e desesperança.

Carnaval em fevereiro é remédio contra a ressaca do real. Vivemos, sem eles, num vácuo de vida, habitado por um excesso de nada.

Sem o contraponto da catarse coletiva, o cotidiano é peso tanto que transforma o tudo em nada. Vive-se a experiência máxima da contradição, da aceitação subserviente. Viramos peças de uma engrenagem de moer gente e almas, entregues, no melhor cenário, ao sonho de consumo da vez. Mas em geral, vive-se para, com sorte e muitos pulos, numa gambiarra inexplicável de correrias pra descolar o do gás, fechar o mês com um negativo que não tire o sono.

Fevereiro existe para fazer essa máquina ter sentido. Para que o ano se reduza a questões práticas e desimportantes de sobrevivência, para, enfim, desfrutarmos da vida sem amarras sendo mais um na multidão.


Malditos aqueles que nos tiraram o fevereiro. Há profunda maldade na extensão da pandemia interminável, em que vacinas são trocadas por curas milagrosas e pensamento positivo.

A cultura da homeopatia, dos óleos essenciais, dos coaches de vida, dos livros de auto-ajuda com foda-se no título venceu.

Assim, vemos negros se virarem contra negros para se mostrarem mais negros e mais certos.

O Centrão embarca com peso no governo mais nefasto que já tivemos – mais até que a própria Ditadura.

Não tem mais como olhar para o lado e ignorar, pelo menos por uma semana, que o presidente da Câmara é um obscuro ente do mais baixo clero, criminoso que mantém cargo e status porque o sistema permite e encoraja falcatruas.

Aqui, preso na estiva de São Paulo, embora não passe fevereiros em Santo Amaro, anseio pelo fevereiro de todo ano. Este, não o quis.

Tal qual o dilema do verdadeiro escocês, este não é o verdadeiro fevereiro. Não mesmo.

Nessa edição #11 da Papo de Galo_ revista, o Carnaval é a pauta principal. Mas vamos fugir um tantinho assim da forma tradicional que muitos vão dar à festa-que-não-vai-ter.

Não vamos falar dos significados do Carnaval para o povo brasileiro; contar histórias em literatura guardada; vamos inverter a lógica dentro do possível, fazendo troça de quem faz troça do carnaval, enquanto no escondido do quarto, vasculhando as fantasias de anos passados, derramamos uma lágrima de saudade pelo glitter que ainda resiste.

É como bem escreveu meu amigo e parceiro de letras Alexandre Lyrio,

“Ao morrer, meu maior medo nunca foi o de não existir vida após a morte. O receio é de que tenha vida, mas não Carnaval. Não faz sentido algum existir sem poder festejar o fato de estarmos vivos.”

Do Carnaval seguimos para o BBB, essa aberração que nos persegue, por mais que tentemos dela nos isolar.

Isso porque estamos visualizando um lado amedrontador, que é absolutamente humano, mesmo que tentemos nos convencer que certos meios são puros em ação e em intenção: a revolta entre iguais por uma autoproclamada superioridade moral, que não está fundamentada em conhecimento nenhum, apenas no levantamento de bandeiras de argumentos autoevidentes de superioridade incontestável.

Assim, ligaremos o patrulheiro de fantasias, o fiscal do carnaval alheio, ao fiscal de vida alheia, que não é exceção, embora alguns insistam que estes são exceção, que não são os “verdadeiros representantes” de um dado grupo.

Apois: é o dilema do escocês de novo.

Vamos raspar no Palmeiras e sua esquecível participação no Mundial de Clubes e mais, muito mais. Tem crônicas, contos, ensaios, artigos, opinião. E um desejo latente de que devolvam o nosso fevereiro.

Boa leitura.


Editorial da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021, páginas 7 a 9.


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Capa da Papo de Galo_ revista #11, de 12 de fevereiro de 2021.

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