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Vacina pra chifre

Vacina pra chifre

Zé Cobra finge repouso, ornando o fim de mesa. As cartas descansadas junto ao copo, um palpite na sinuca, desinteressante. Cobra lazarenta, carrega o casal preto como quem tivesse de seis e dama. Sinaliza o parceiro, apruma o para-pé. A primeira deixa os patos fazer, que eles voltam com fome. E eles fazem, de três matando nada. Zé Cobra só espera Tião de Lurde, na sua canhota, gritar-lhe o ouvido. Truco, caipora. E ele vai fazer o que sempre faz. Olhar pra baixo, afetar raciocínio e, do nada,  esgoberrar as veias do pescoço, é meia-dúzia seu frouxo. Ele repassa a jogada na cabeça, antegoza, cobra maldita. Tião de Lurde vira de um gole a cachaça, esvazia de um tiro o copo de cerveja, se dirige ao parceiro. Venha.

― Se foda, eu vou falar!

Zé Cobra se empertiga, a íris se arregala no rosto impassível, vem lazarento, pula na faca. Mas estranho. Tião de Lurde larga as cartas, bate na mesa, rosto afogueado.

― Zé Cobra, eu vou falar.

Fala, orelha seca, truca logo que a seizada tá na goela.

― Eu vou falar! Zé cobra, TU É CORNO, Zé Cobra!

(…)

Se tinha verdade ali era essas duas. A primeira: Tião de Lurde era amigo bom, homem direito, ele próprio não frequentando outrem que não Lurde, a não ser em zona, que zona não conta. Notícia de chifre é aviso ruim de dar, ele achou o jeito lá dele. A segunda: Zé Cobra era corno. Olimpicamente corno. Corno tanto que, mal Tião de Lurde se pronunciou, esvaziou-se o bar pela metade, recibo claro das verdades no anúncio.

Ah, Maria Rita.

Trabalhadeira que era um pé-de-boi; alta e magrona feito trator patrola. Uma joia. Engatou e desmanchou três noivados seguidos, três moço bom, de cidade. Não se agradava de aliança e papel escrito, tudo estraga-rabicho, rabicho bom demanda liberdade e largura de consciência, cognome safadice. Zé Cobra, trinta anos mais velho, ofereceu as duas coisas. Liberdade e safadice. Mais casa e horta. Levou Maria Rita no bico, noivado rápido, casamento de cartório.

Ninguém não falou de regra, mas Zé Cobra sabia o que cumprir. Observava bem a hora de chegar em casa, produzia barulho, gostava não ver. O rabicho de Maria Rita pagava, pra ele tava bom, orgulho de macho é atrasa-vida.

Até vir o Tião de Lurde e descacetar tudo. Uma coisa era ele, Zé Cobra, saber e fingir que não. Que fosse. Outra, diversa, era todo mundo saber que ele sabia. Aí demandava atitude pública; corno até se admite, corno manso é bicho feio.

Preguiça.

Maldito Tião de Lurde, carola dos inferno.

(…)

Chega em casa Zé Cobra, ultimoso. A mulher faz um dengo, o homem se desvencilha. Proclama:

― Maria Rita, acabou mentira nessa casa! Agora suncê vai rezar certinho tudo que é homem que suncê me enganou. Anda. Tudinho.”

Maria Rita, cândida:

― Mas assim de cabeça é difícil…”

Sucede que Maria Rita era mulher, e forte, passo que Zé Cobra era homem, e fraco. Ela começa a desenrolar a lista, voz gorda, gosto nos lábios. Zé Cobra doído, doido:

― Até ele? Mas, ara, que eu não piso mais em missa.”

― Uai, já não pisava, acha que eu fiz como?”

Zé Cobra dá jeito de interromper a humilhação.

― Tá bom, tá bom. O resto suncê passa por escrito.

Maria Rita arrecua, resmunguenta: se o homem não sabe nem ler…

(…)

Zé Cobra bruxo velho, truqueiro de bar. Conjuminou arranjo pro impasse, manteve o casamento, apagou a fama de boi.

Solução manhosa, parapé de zapespada.

Acertou-se o seguinte: dos rabichos da esposa, Zé Cobra passaria ser o primeiro avisado. Da boca dela mesmo. Anulava-se, assim, a principal característica do corno, de ser o último a saber, desnaturava-se a triste figura, desfazia-se o galhoso ornamento.

Zé Cobra feliz, Maria Rita exultante: não só manteve os rabichos como galgou posto de mulher mais honesta da cidade: avisado o marido, ninguém podia dizer que a esposa o enganasse. Nem Lurde, cavalo-de-padre, seria capaz de tamanha transparência.

Vacina pra chifre, tecnologia brasileira. Me diga aí casamento mais sucedido.

Maria Rita, de quebra, manteve o gosto de blefar. Cada rabicho, encantado pela voz gorda da mulher, se imaginava o único, coitado. Zé Cobra gostava. Tanto que, visse um deles passando pela rua, o homem, superior e risonhento, vaticinava:

― Alá o corno…


Crônica publicada na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 22 e 23.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

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