Lendo agora
Ypiranga vence o racismo na república da bola

Ypiranga vence o racismo na república da bola

Salvador deve ao Vitória o fortalecimento identitário de sua juventude, pela via do desporto, em uma época de intensas transformações nas feições da cidade. E deve ao Ypiranga, por sua coragem e obstinação no enfrentamento do racismo.

Uma sociologia do Ypiranga poderia representar um esforço para pensar esta trincheira do bem comum, tendo como limite a impossibilidade de explicar como há pessoas e, no caso, um clube que escapa à influência do seu tempo.

Como não ser racista num tempo em que as teses de Lombroso, aceitas na academia, tinham como pressuposto a determinação do tipo biológico para o perfil psicológico, que explicariam desde os crimes à sexualidade?

Os efeitos da rejeição podem servir de trilha para compreendermos este leve desespero que produz a mudança histórica. Quem bate, esquece. Quem apanha, lembra. E dói lembrar mutilação, castração, estupro…

A rejeição dos britânicos, no cricket, fez os 19 rapazes criar o clube brasileiro da Vitória. Agora, a história dava mais um passo ligeiro à frente, com a liderança dos ypiranguenses, na rejeição ao racismo que o mesmo Vitória defendia.

Apesar de libertos, os negros ainda tratados como coisas, diferente de gente por conta de seu aspecto associado a macacos e sua pele marcadamente retinta por cargas de melanina acima do nível tolerado para se identificar o cidadão de bem.

Os intelectuais reforçavam as teorias racistas que consideravam a miscigenação excessiva do brasileiro como um impedimento para o engrandecimento e a construção de uma verdadeira nação progressista.

O futebol sustentava esta tese. Não se permitiam jogadores negros, até que o então 7 de Setembro, primeiro nome do Ypiranga, decidiu aceitar os ex-escravos. Negros com brancos, sob as mesmas leis! Absurdo: então, esta é a tal república!?

O Ypiranga acolhia e incluía quem estava fora do jogo: comerciários, soldados, estivadores, feirantes, artesão e os semofício, contingente que não era pequeno, pois não se preparara as senzalas para viver em lógica de liberdade de mercado.

Esta aceitação de gente sem eira nem beira foi um acinte inaceitável num contexto de atletas nascidos e criados nos casarões da elite, embora parte deles, baianos mistos, sofressem com erros étnicos, cabelo crespo, pele torradinha…

O Mais Querido escreve, assim, uma das mais belas páginas do nosso futebol, ao denunciar o racismo, o que pode ser negramente demonstrado na revelação de craques em seus quadros campeões dos anos 1910 e principalmente dos anos 1920.

Um desses craques desassuntados é o nosso melhor e mais completo jogador baiano de todos os tempos, nome da rua principal do quilombo do Engenho Velho da Federação: Apolinário Santana, ou simplesmente, Popó.

Uma homenagem perfeita em um bairro repleto de candomblés, puxando aqui a brasa para o jeje de Mãe Índia, o Bogum, na Ladeira do Manoel do Bonfim, número 35, meu domicílio religioso, cada vez mais resistente à intolerância.

Popó começou a jogar aos 14 anos e brincou em todas as posições, até de juiz, ainda que tenha se destacado mais como meia e artilheiro. Graças a sua condição de negro e craque, calou a boca dos racistas com manchetes em jornais e revistas.

A revista Vida Sportiva dedicou capas a Popó, para fazer justiça ao jogador que inspirou os primeiros versos declamados em coro pelos frequentadores dos precários quadriláteros baianos.

O xará do ‘boxé’ famoso, Popó ficou famoso pelas acrobacias e malabarismos. Moldou o futebol a seu jeito, uma arte reinventada pelo talentosíssimo perfil brasileiro de ser sutilmente malandrinho.

Além de fazer justiça aos negros, esta segunda fase do futebol oferece outro aspecto muito positivo, que desprezamos quando cedemos às imposições do mercado, ao centrar atenções no clássico Bahia x Vitória, a partir dos anos 1950.

Abandonamos a pluralidade que tanta riqueza cultural nos oferecia. Times eram fecundados em cada esquina. A bola estava ao alcance, muito antes das fábricas a produzirem. O improviso, pai e mãe da criatividade, inspirava os craques.

Pax, Aquidaban, São Bento, Royal e Auto-Bahia foram criados por vizinhos apaixonados por aquela coisinha redonda, saltitante e gostosa. Mais ou menos como ocorre nas ligas reunidas na associação ironicamente chamada Fefa.

Muito antes da fundação de seus xarás de Alagoinhas e Feira de Santana, tivemos em Salvador um Atlético e um Fluminense campeões nestes anos fartos. Eram também várias as ligas, como a de Brotas, mais famosas que a Liga oficial.

Ao visitar Salvador, o jogador brasileiro mais famoso da era pré-Pelé foi jogar em Brotas. Sim, Friedenreich, o famoso El Tigre, filho de um alemão com uma lavadeira brasileira, bateu seu babinha entre nós.

Neste tempo de compartilhamento do futebol ao infinito, ninguém era de ninguém, pegação geral, poliamor fluindo à bola fluindo nos bairros e o futebol ganhando corações sem precisar casar. Liberdade é uma bola quicando sem dono.

Nesta coletiva alegria de amor à bola, sem ciúme nem posse, um amante marcante, apesar de toda a beleza negra do Ypiranga, foi o campeão de 16, o República, cuja rica história poderia ser ensinada nas escolas baianas.

Enquanto amava a bola, o República foi complementar ao Ypiranga porque alertava no nome para que o mundo livre vem de oportunidades iguais para todos, sem rancores ou ressentimentos de classe ou etnia.

Defensor das cores verde e amarelo, o República migrou para o futebol, os princípios do ideal que homenageava no nome. Se o Vitória afirmou nossa juventude e o Ypiranga defendeu nossa periferia, o República uniu todo mundo.

A res publica, ou ‘coisa pública’, mais uma dívida eterna da civilização ocidental com os gregos, estava ali representada em um time campeão da cidade, que tinha como apanágio a frase ‘direitos e deveres iguais para todos’.

Como se o futebol fosse escola de ética e paixão pela instituição republicana, o campeão de 16 chamou tanto a atenção por suas qualidades ideológicas, além da categoria com a bola no pé, que não resistiria muito tempo.

Embora proclamada, a república jamais foi bem vista pelas elites e donos dos meios de produção, que engoliram o fim da monarquia, aceitaram a abolição, mas combatiam qualquer vestígio de construção de uma sociedade justa.

A lógica monarquista continua até hoje, com seus ‘sinhôzinhos’ das melhores famílias dominando áreas estratégicas, daí o monitoramento de toda manifestação que possa desdobrar em luta por defender a república a cada aurora.

Fica aqui, pois, aos republicanos convictos e incessantes, nossa saudação aos heróis do valoroso República, campeão da cidade da Bahia de 1916 e de todos os anos de nossa vida política desde sempre.

Viva o República, ao som de Edson Gomes: “a nossa luta não acabou” , e do hino ao Dois de Julho, “com tiranos não combinam brasileiros corações…” República, minha vida, República

meu orgulho, República, meu amÔÔÔÔ…


Capítulo 1 em folhetim do livro “Tu és o grande amor da minha vida: As aventuras da bola na cidade de Salvador” de Paulo Leandro publicado na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 54 a 60.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

Assine nossa newsletter!

Conteúdo exclusivo e 100% autoral, direto no seu email.


Contribua!

Antes de você sair…. Tudo o que você lê, ouve e assiste aqui no Papo de Galo é essencialmente grátis. Inclusive o que escreve em outros lugares vêm pra cá, sem paywall. Mas vem muito mais pela frente! Os planos para criar cada vez mais conteúdo exclusivo e 100% autoral são muitos: a Papo de Galo_ revista é só o primeiro passo. Vem por aí podcasts, vídeos, séries… não há limites para o que pode ser feito! Mas para isso eu preciso muito de sua ajuda.

Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade.

Livros!

Ah! E tem também os meus livros! “Futebol é uma Matrioska de Surpresas” (2018), com contos e crônicas sobre a Copa do Mundo da Rússia, está em fase de finalização de sua segunda edição. Além disso, em dezembro de 2020 lancei meus 2 livros novos de contos e crônicas, disponíveis aqui mesmo na minha loja virtual: “A inescapável breguice do amor” e “Não aperte minha mente“.

Apoie: assine a Papo de Galo!

Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.


Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.