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Trabalhado na catiguria

Trabalhado na catiguria

top, topíssimo, topzera

De tanto que falava, Reinaldo ficou conhecido na região do Vale do Ogunjá, na linda, bela e besta Soterópolis, como “Catiguria”. Um vício de linguagem que chegava a irritar o povo. Vinha de família, disse ele certa feita, empurrando a sardinha para o pai, que não podia se defender, porque já tinha passado dessa para melhor. “O enterro foi coisa de catiguria, meu irmão. Caixão de madeira de lei, contratamos umas 35 carpideira que choravam com catiguria. Só o fino.”

É que Reinaldo tinha a mania de só olhar o lado bom da vida.

“Olha como mata a bola, olha. Catiguria, pai!”
“Porra, nem deixou engasgar o carro na subida, hein? Catiguria”
“Viu a novela ontem? Man, vou te falar, sem sacanagem: catiguria.”

Até para falar mal ele arrumava a deixa.

“Vai ficar xingando, é, mizéra? Perdeu a linha, pai. Que falta de catiguria.”

Os amigos sabiam. Roupa nova? “Catiguria.” Namorada? “Catiguria.” Cerveja trincando de gelada? “Catiguria.” Ninguém aguentava mais.

“Porra, ó paí, ó, lá vem o Catiguria…”

Assim foi que ele ficou conhecido como Catiguria. Ele, apesar de merecer a alcunha, não assim tão chegado no apelido. Gritavam, “Venha de lá, Catiguria!” E ele respondia “Meu pai comeu sua tia.”

O que não entrou no livros de história, esquecido pela falta de selfie no jardim da infância da internet, é que ele foi um visionário. Ora, um homem muito à frente de seu tempo, sim, senhor. Quando ainda a internet discada era coisa maravilhosa e uma música demorava apenas 3 dias para ser baixada, ele tinha uma página na internet. E lá ele postava as coisas de sua vida. Normalmente, uma foto, coisa simples acompanhada de um comentário singelo: “Catiguria.”

De vez em quando incrementava: “Catiguríssimo!”. Quando queria ser sarcástico, largava um “Catigurerson.” Se o intuito era ser decolado, “Catiguzera.”

Como ninguém tinha internet – smartphone era coisa de alienígena ainda – e ele deixou de pagar a hospedagem e o provedor, seu relato diário de suas coisas se perdeu na poeira cósmica do lixo virtual.

Faz uns sete anos que Catiguria morreu. O enterro foi simples, no nível que a família poderia bancar. Na lápide, está inscrito: “Aqui jaz Catiguria. Aquele cujo pai comeu sua tia.” Justo.

Em setembro passado os amigos acabaram se encontrando num caruru de Cosme e Damião. Todo mundo plugado no celular. Foi quando Mãe veio com a baciada de caruru gritando “Bora comer que tá pronto!” que correria se fez. Galera de prato na mão, servindo de tudo um pouco.

“Quédi pipoca, Mãe?”
“Tá ino!”

O cheiro subia e viciava, prenúncio do prazer. Povo se servindo tomando cuidado não babar na panela. Era cada prato com gosto, de dar orgulho! Um deles montou o seu com açúcar e com afeto; parecia coisa de restaurante. Pois ele não contou conversa, sacou seu celular, tirou a foto e já ia postando na internet.

“Rapaz, e esse caruru? Top, hein?” Alguém comentou na mesa enquanto os amigos comiam.
“Top? Topíssimo!”

Mãe veio correndo da cozinha, colher de pau em riste. Parou com mão na cintura, balançando pra lá e pra cá pra no embalo ficar mais retada. “Top? Vocês são abestalhados agora? Menino amarelo que jogava gude no tapete do apartamento? É a porra… Top é barril, viu? No meu caruru não tem top, não senhor. Se plante, tome tento, e deixe de xibiatagem.”

“Oxente, Mãe? E é o quê que pode falar?”
“Rapaz, um caruru deste quilate só pode estar CATIGURIA!”

Todos suspiraram, concordando. E levantaram brinde ao amigo finado, que se foi antes do tempo e talvez tenha errado apenas a palavra para ser elevado ao panteão dos eternos como criador de tendências, um ex-futuro digital influencer, por assim dizer, porque o “catiguria” é o “top” de antanho: “Catiguríssimo!”

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