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A mentira como um dos lados da moeda chamada ciência

A mentira como um dos lados da moeda chamada ciência

Dias atrás, um teaser sobre o novo talk show sobre ciência da National Geographic, chamado “Posso Explicar”, chamou minha atenção para o momento desafiador que estamos vivendo. Em uma passagem do comercial, Fabio Porchat comenta que “falar de ciência no Brasil ficou perigoso”, evidenciando a triste realidade de que associar a ciência com a verdade tem sido um verdadeiro ato de resistência política em nosso país. Infelizmente, mais um resultado destes tempos turbulentos, em que se tornou comum pessoas se apresentarem levianamente como experts – principalmente nas redes sociais – para falar mentiras descaradas.

Se, ao pensarmos em ciência, naturalmente pensamos em verdade, não se pode negar que a mentira também está intimamente relacionada com a ciência. Pensando nesta aparente contradição, comecei a me questionar sobre as diversas possibilidades em que a mentira se relaciona com a ciência. Desse questionamento, surgiram alguns pontos que gostaria de dividir com você ao longo deste texto.

O mais básico, na minha percepção, é posicionar a mentira como objeto de estudo. Antropólogos e cientistas sociais versam sobre a mentira como elemento de coesão social e formação de vínculos, seja pelos contos de fadas que nos trazem orientações sobre os comportamentos que devemos seguir, seja pelas pequenas mentiras que falamos no quotidiano para agradar uma pessoa querida ou fugir de uma situação embaraçosa. Psicólogos e psiquiatras estudam as doenças relativas à mentira, à fantasia – as mentiras que contamos a nós mesmos ou aos outros – e os consequentes desvios de personalidade, como a mitomania. Comunicólogos e analistas do discurso estudam a mentira como elemento intrínseco da construção de certas narrativas, e seu impacto na história e na condução sociopolítica de um povo. Enfim, muita gente estudando a mentira, sob diferentes perspectivas.

Há também a mentira que ganha credibilidade, métodos e procedimentos científicos, e acaba se consolidando como pseudociência. É claro que isso acaba se relacionando um pouco com as convenções sociais e o com o repertório cultural de toda uma sociedade, transformando-se na famosa “mentira que não faz mal a ninguém”. Dentre os vários exemplos que poderiam ser mencionados, a astrologia é a mais famosa das pseudociências: todo mundo sabe que não faz o mínimo sentido a posição dos planetas na hora exata do nascimento afetar diretamente a personalidade de uma pessoa, mas o fato é que ninguém resiste a dar uma lida no horóscopo quando pega o jornal do dia. Todavia, desvios como o terraplanismo – apesar de soar aparentemente inofensivo para alguns – fazem bastante mal a toda a sociedade pois, na busca por diminuir a credibilidade da ciência, passam a disseminar o desinteresse pela ciência verdadeira, com o terrível potencial de atrasar o desenvolvimento tecnológico e social como um todo.

Outro ponto que a mentira desponta é como subterfúgio para a construção ideológica. Do mesmo jeito que se dizia que existiam raças superiores na humanidade, legitimando a barbárie do racismo, há quem utilize a ciência como instrumento de ratificação dos próprios pressupostos ideológicos. Nesses casos, o método científico é utilizado para garantir que o pressuposto ganhe credibilidade, sendo consequentemente adotado por outras pessoas mais propensas a argumentos científicos. Seja no processo de formação, seja na prática diária de pesquisa, qualquer cientista se depara com essa questão, pois a linha entre perspectiva teórica e ideologia sempre foi bastante tênue. Isso não significa que todos os cientistas estejam corrompidos, ou que o viés ideológico seja o “calcanhar de Aquiles” da ciência. Significa que, quando os vieses não são tratados com a devida ética e responsabilidade, os resultados de pesquisas corrompidos pela ideologia podem promover completas distorções da realidade. Certa vez, li num post de um grupo de pesquisadores que era necessário adotar reformas econômicas “fundadas no bom senso”. Ora, desde quando a ciência pode se sustentar num conceito tão difuso quanto o bom senso? Quem, para esse grupo, estabelecerá o que significa bom senso? Lógico que eles próprios, e de acordo com o que lhes convier.

A mentira pode também ser utilizada no processo de comunicação científica, ou seja, no processo de apresentar resultados de pesquisas para a sociedade. Ainda que esta discussão esteja um pouco relacionada com o item anterior, neste caso a ideia é utilizar estatísticas ou dados verdadeiros para, na apresentação, manipular a percepção dos receptores da mensagem, fazendo uma releitura da forma que mais convém ao emissor. Basta lembrar das polêmicas que envolvem os dados sobre as mortes por COVID-19 e o andamento da vacinação no Brasil: enquanto o discurso do governo federal tenta fugir dos números absolutos de mortes usando a taxa de mortes por 100 mil habitantes – que supostamente colocaria o Brasil num lugar menos vergonhoso, pois nos compararia com países de população menor que a nossa –, apresenta justamente os números absolutos quando se refere ao número de vacinados, ignorando totalmente a coerência do discurso. É como se bananas e laranjas, só pelo fato de serem frutas, fossem perfeitamente comparáveis entre si, e pudessem ser tiradas da cesta na hora que fosse mais conveniente para quem fala.

Por fim, a perspectiva que eu particularmente considero a mais interessante de todas, que é a mentira sendo encarada como parte do processo evolutivo da própria ciência. Ou seja, a partir do momento em que uma nova verdade científica se estabelece, a verdade anterior torna-se automaticamente uma mentira. Em seu tratado sobre a dialética intitulado “A arte de ter razão: 38 estratagemas para ganhar um debate sem estar certo”, Schopenhauer fala que é necessário sabermos o que é a maldade, não necessariamente para usá-la, mas para conseguir identificar a maldade no outro, e saber como se defender dela. Se fizemos o paralelo com a verdade e a mentira, a mentira poderia ser considerada o caminho para a verdade, de modo que, se reconhecemos a mentira é porque sabemos o que é a verdade, ou de onde ela vem.

Portanto, a partir desta percepção sobre o papel da mentira na ciência, acredito ser possível nos conectarmos ainda mais com a ciência, e conectarmos definitivamente a ciência com a verdade. A mentira não precisa ser vista como um problema em si. O problema está na forma como a usamos do ponto de vista científico e social, e quais as consequências do seu uso. Afinal de contas, não é por acaso que temos um dia dedicado à mentira, mas não temos um dia dedicado à verdade.


Artigo publicado na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 18 a 21.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

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