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A tristeza da comparação de fé como merecimento

A tristeza da comparação de fé como merecimento

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Em meio à pandemia, ações de solidariedade se espalham mundo afora. Na dificuldade do isolamento, que provê desafios mentais e econômicos de alta gravidade, as mobilizações para levar uma condição ligeiramente melhor a quem mais sofre acalenta a alma e enche o nosso coração de esperança.

Mas ao mesmo tempo em que tantos se solidarizam, outros tantos, tão significativos quantos, e certamente muito mais barulhentos, seguem caminho inverso, promovendo uma confusão de entendimento em todos nós. Sim, cabe a cada um escolher se o copo está meio vazio ou meio cheio, mas quando o nada é metade do total, o problema há muito saiu do controle.

Recentemente, amigo estava em live com uma paciente que se recuperou da Covid-19. Ela, que esteve internada por conta da doença, viu gente morrer ao seu lado. Olhou na cara da tragédia. Era de se esperar, pois, uma centelha de humanidade, certo?

Mas para o branco rico namastê, não é bem assim. Porque quando Gabriela Pugliesi faz troça com a doença que chamou de sua e que já vitima mais de 5 mil brasileiros (sem contar a evidente subnotificação) e canta foda-se a vida num story do Instagram, está resumindo um pensamento comum da gente que faz passeata para reabertura do comércio, vendendo genocídio disfarçado de preocupação econômica, como se houvesse possibilidade de normalidade financeira em época de roleta russa do contágio.

Com certeza você já viu gente por aí falando do céu mais limpo (sim, está), dos animais selvagens que voltam a circular nas grandes cidades (sim, estão). O problema, por óbvio, não é contemplar o que tem acontecido, apelando à positividade para esconder o drama do momento no mundo. É dizer que a doença veio PARA ISSO. Para que possamos nos reconectar conosco mesmo, diz a pessoa pouco antes de fazer yoga em casa e com um vinho esperando para logo mais à noite.

Está na postura não simpatizante à tragédia alheia, que é de muitos, um sintoma e a causa do momento pelo qual passamos. Se se vai às ruas e se diz que o vírus comigo-não-pode, eleva-se o dilema ao sobrenatural, num merecimento à brasileira, afinal, se Deus é brasileiro estamos todos protegidos, como não, tenha fé e tudo há de se resolver.

O x da questão, por supuesto, é quando a crença extrapola o limite do pessoal. Colocar-se em perigo é direito seu, vá lá. Colocar terceiros em risco, é história completamente distinta.

O mesmo raciocínio se aplica a argumento de fé. Dentro das 4 paredes da sua mente, pode-se tudo, aceita-se tudo. Para fora, o ideal é baixar a bola, porque fé se sente e, sobretudo, não se mede.

Ah!, a medição da fé… Tantos problemas no mundo já causados pelo comparativo de fidelidade ao divino. Queremos, ora, como insignificantes que somos num mundo de mais 7 bilhões de habitantes, não mais que um vice-treco do sub-troço (beijo, Cortella), nos vermos como especiais escolhidos a dedo por uma devoção que é só nossa, que ninguém mais tem. Ser a bolinha do bingo do destino eleva o sentimento de que somos os tais, os selecionados, o representante máximo de como a fé move montanhas, vejam aqueles outros, reles comuns, que tanto pedem, mas não com minha ênfase, com meu ardor.

No que retorno à live sobre superação da Covid-19. O entrevistador pergunta o que ela acredita que a fez sobreviver. Veio, de supetão a resposta #gratidão, pero no mucho.

Você acha que houve agradecimentos aos médicos? Ou então quem sabe uma verificação de que houve rápido atendimento naquele momento, com o plano de saúde garantindo a disponibilidade do leito? Ou então como o acesso a informações fez com que identificasse o problema, procurando ajuda mesmo com sintomas embrionários?

Não, nada disso.

A explicação era outra, claro.

Disse como durante o tratamento se agarrou à fé e nunca perdeu as esperanças. E que viu, ao seu lado, um paciente que “largou mão” cedo, que “desistiu”, e foi levado pelo beijo da morte.

Projeto mal acabado de Pugliesi, com a profundidade de um pires cheio d’água, tal qual a blogueirinha que vende nada a tanta gente que busca um conceito inatingível de vida perfeita, a branca rica namastê credita sua sobrevivência à fé. Mas, a sobrevivente vai além: ao comparar a sua fé com a do paciente ao lado, de quem nada sabia, cuja história era tão desconhecida para ela quanto conceitos básicos de empatia, atribui para si o dedo apontado da intervenção divina, como se o de lá de cima tivesse uma cota e a profissão de fé é uma gincana para escolher quem vive e quem morre.

É o privilégio branco-rico-namastê em sua essência, que se revolta diante de questionamentos e libera o mantra dos que acreditam na meritocracia acima de tudo: se eu sobrevivi é porque eu mereci.

Quando se vê a morte na cama ao lado e se escolhe, em vez de prestar solidariedade aos montes que se amontoam em valas comuns, em vez de se enternecer à causa, em vez de olhar para si e perceber que a fé é atributo é pessoal e intransferível, medir forças numa tribunal injustiçável, em que é juíza e também promotora (obrigado, Lava-Jato), é porque a civilidade e a humanidade estão longe de seu centro, de sua alma.

Ela, pois, se junta à blogueirinha para gritar “foda-se a vida”, orgulhosa de seu feito sem sentido, absolutamente crente da preciosidade que se tornou pela seleção divina, mestra da fé, pérola da oração, que se sente, por isso, no direito de julgar e condenar à morte aqueles que não competirem em pé de igualdade consigo. Morre, logo, quem não mereceu.

Parabéns, senhora. Aproveite sua história de superação e pinte-a como isso a fez rever seus posicionamentos com relação à vida, como isso vai mudar seus hábitos alimentares, como consumirá menos, como passará a admirar as pequenas coisas da vida, que agora o copo viverá meio cheio, como foi para isso, sim, como não?, que o vírus veio.

Estamos apenas no começo da tragédia. E é quando o desespero toma conta que despertamos nosso lado mais perverso. Mesmo que ele esteja disfarçado de boa coisa.

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Este desabafo é quase um fechamento de mente, em que se verbaliza desconfortos para que eles não tomem conta. Falar significa definir corpo, dali não se passa e assim desaparece. Sigamos em frente.

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