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Amendoim! Milho!

Amendoim! Milho!

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Em plena véspera de São João, fole fungando fogoso, mas lá estavam os dois briguentos, discutindo em argumentos impositivos, cheios de razão e de certeza:

— Amendoim!

— Milho!

Aproximei-me curioso para entender o porquê da quizumba.

— Você acredita que esse sacrista está dizendo que o ingrediente mais importante do São João é o amendoim?

— Véi, quem compete com amendoim cozido? Senhor seu ninguém.

— Ah, é? Canjica. Mugunzá. Assado. Cozido. Pamonha. E mais sei lá o quê.

— Aonde! Oxe, licor de milho, quem já  ouviu falar? Já de amendoim, é abrir a garrafa e acabar num segundo.

— E alguém na vida já fez bolo de amendoim? Aqui na mesa, por exemplo, só vejo bolo de fubá.

Interferi.

— Rapaz, que zoada é essa? Vamos resolver esse impasse aqui? Faz o seguinte: vocês me convencem de qual é o mais importante e o que eu escolher, é a verdade. Que tal?

Ambos, talhados na certeza inabalável de seus conceitos, concordaram instantaneamente. Assentei algumas premissas.

— Mas pra isso vou precisar ampliar o espectro. Assim, considerar mais variáveis, entendeu?

— Pode colocar o que for. No fim vai dar Amendoim, certeza.

— Milho!

— Amendoim!

A disputa prometia.

Sentei-me à mesa. Pratos à disposição, muitos copos. Arrumei um caderno para guardar notas de cada etapa e verificação empírica. Comecei com meu processo de embasamento e justiça.

— Me passe um pedaço de milho cozido!

O defensor do milho se apressou em me servir. Mas o que já era bom poderia ficar ainda melhor.

— Não esquece de colocar uma manteiga e um pouquinho de sal.

Fui prontamente atendido.

— Hmm… É preciso saber o que vai bem com o milho cozido, pra entender a adaptabilidade do milho às várias bebidas, saca? Aqui tem vários copos. Quero um licor de cada. E assim os dois duelistas fizeram. Jabuticaba, chocolate, maracujá, tamarindo, cajá, café. Era um gole e uma mordida e uma anotação, sempre respeitando a seriedade que o momento exigia.

— Agora, aos cozidos: milho e amendoim, por favor. Ah! E um pedaço de cada bolo também.

Prontamente correram para arrumar tudo e facilitar a análise. Intercalei, então, numa lógica irrefutável, combinações várias. Cozido, um toco de bolo, licor pra acompanhar. Vez ou outra, na inadequação do combo, franzia a testa em desaprovação, o que apenas aumentava a expectativa.

Boa meia hora se passou neste entendimento. Anunciei que o fim estava próximo.

— Pronto! Imagino que estou pronto e em breve poderei dar a minha resposta final. Para isso, eu… AH, NÃO! —exclamei— Como pude deixar passar a tábua de frios e o baião de dois? Pratos novos, rápido!

E na providência, dei a largada para a fase 2 do experimento.

Mais bolos, mais licores, mais combinações e sensações. O queijo cuia misturado com uma geleia aqui, licor de fruta. Garfada de baião de 2, um naco de milho, licor de café. Bolo de carimã com qualquer coisa.

Como era de se imaginar, logo atingi o limite físico do estudo. Estava, pois empanturrado, sentado meio de lado na cadeira, porque a retidão da postura aumentava a pressão no estômago.

— Está na hora!

Os competidores se aproximaram com atenção.

— E o que vai ser?

— Amendoim, claro!

— Milho!

— Calma, calma. Antes de apresentar meu relatório final, é  preciso deliberar.

Pedi licença e fui ao quarto privado exercer a deliberação com a devida tranquilidade. E confesso que deliberei. Deliberei com afinco, com precisão, com presteza. Deliberei em audição e olfato, evitando ao máximo a visão, porque tudo tem um limite. E depois de tão profunda deliberação, aliviado, feliz com o desdobramento singelo de um São João que prometia ser apenas mais um, retornei, triunfal, à sala onde os dois tais aguardavam ansiosamente.

— Minha decisão está tomada.

— Quero ver você pagar a aposta, sacana.

— É milho, certeza!

— Qual o quê! Se não for amendoim, tá errado.

Limpei a garganta pedindo silêncio.

— Depois de muito deliberar —e que deliberada, acho bom até avisar aos outros para evitar ir ali atrás agora, porque tem uma nuvem de deliberação ainda presente— cheguei à conclusão definitiva.

— E qual é? — Eles se remexiam empolgados, ansiosos.

— Depois de tanto tempo entendendo as mais diversas combinações, pratos, bolos, licores, que você, aliás, serviram com ardor e zelo, cheguei ao ponto que, estou certo, ambos concordarão em dizer que é irrefutável.

Sentia-se a tensão no ar. O peso da vontade. A densidade da expectativa.

— Fala de uma vez, homem!

— Pois eis a verdade: a minha conclusão irrevogável, baseada em tudo que vivi e experimentei essa noite, é a de que —pausa dramática— vocês são dois completos idiotas.

Você pode até achar que é exagero, mas juro que no instante começou a tocar “Lorota Boa” de Luiz Gonzaga.

Passados os xingamentos, recebidos às gargalhadas, ao fundo, ouvi o falatório, agora quase sussurro envergonhado, dos insatisfeitos competidores de rostos franzidos e braços cruzados:

— Amendoim!

— Milho!


Conto publicado com exclusividade na Papo de Galo_ revista #4.

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Capa da Papo de Galo_ revista #4

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