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Das coisas que perdemos

Das coisas que perdemos

Carybé, perdemos, crônica, Gabriel Galo,

Conta-me meu til e amigo Paulo Leandro que na alvorada dos anos 1990 cobria evento do Governo do Estado no amalbençoado Pelourinho. Nas idas e fluxos que cresciam ou minguavam de acordo com a passagem ida-ou-vinda de ACM, na vazante avistou Carybé, mítico, num bar qualquer, ali a sopesar (alô, Joaquim Barbosa) as inutilidades da vida. Fã — quem não o gosta, bom sujeito não é — importunou-se a se declarar vezeiro da apreciação da arte inconteste do artista supratemático. Agradecido, o baiano de Lanús rabiscou-lhe um mimo num guardanapo, uma lembrança. Um tesouro. Só dele, para ele, sem intermediários, fiado no querer e no bem-fazer.

Como todo bom jornalista que se preze — potencializado pela excelência que lhe cabe — a desorganização é sua sina. E dentre montanhas de papel que se acumulontoavam, o seu Carybé, aquele único, sem cópia e sem registro, sumiu e virou história. Prossegue PL, “talvez seja melhor assim.”


Talhados pelo sublime ardor da saudade, eu e meus filhos contamos os dias para suas férias, quando se despirulitam do Fim do Mundo à Terra Brasilis. Diz minha filha, 4 anos de energia acumulada, que vai dormir em mim. Não comigo; sobre mim. Ser-se pai é também ser colchão, e assim descansaremos — ela mais que eu — no conforto aconchego de um abraço que não se quer nunca soltar.


A estes momentos não cabe registro. Há coisas que só criam asas no mundo do sem-prova. Junta-se ao canhotos dos 2 ingressos, meu e de meu pai, de quando o Vitória goleou o Palmeiras naqueles 7 a 2 de abril de 2003, ao álbum de figurinhas do Brasileiro de 89, às tantas passagens que, fugazes, piscam, encantam e somem sem rastro físico.

Vão os registros se depositar no buraco negro das coisas da vida. Um congraçamento daquilo que sai da matéria para entrar na eternidade de um lembrar vago, que descasca com o salitre oxidante do tempo a corroer sinapses.

Terá sido verdade? Assim ocorreu? Importa este tanto, o construto da evidência, quando para nós é, e de dúvida basta a nossa?

Tudo, em breve, não será. E em não sendo mais, talvez nem tenha sido então.

Somos a soma do que plantamos na alma. É no bitcoin da riqueza interna, transferível como conto, intransferível em valor para si, que mora a casa da vó do espírito.

Somos, pois, a soma do que perdemos, do que já não temos.

Está certíssimo meu til e mentor. O guardanapo com o recuerdo de um símbolo se encontra no pó da existência com o canhoto do ingresso da alegria de antanho e com tantos aquilos-que-não-mais-são. Talvez seja mesmo melhor assim.

Ou talvez tenha ele se equivocado justamente no talvez, e seja melhor assim e ponto, sem margem ao dúbio.

Agora, quem sou eu para advogar pela certeza alheia em algo que apela ao âmago, exclusividade cada-única, montada em gama cada-quálica incomparável?

Importa este tanto, o construto da evidência, quando para nós é, e de dúvida basta a nossa?

Talvez seja melhor assim. Não mais temos, talvez nunca tivemos, certo apenas que não mais teremos nem seremos. Enquanto isso, acumulamos os nãos, reservando-nos o direito de calcular os juros à moda. Seguimos montando eus ao sabor de um bate-cabeça cósmico, sem controle, mas que buscamos a ilusão de ele haver, para não nos pormos loucos diante da intangibilidade de ser e de ter.


Crônica achada a esmo nos registros de notas de meu celular. Escrita em 1 de novembro de 2018. É como ter achado dinheiro no bolso de um casaco sem uso há tempos.


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