Lendo agora
_Entrevista: Daniel Caribé

_Entrevista: Daniel Caribé

Daniel Caribé, Papo de Galo, Gabriel Galo, revista, entrevista,

Um dos maiores desafios das prefeituras é o transporte público. Um dos elementos mais importantes para a promoção da integração entre camadas socio e espacialmente segregadas, o tema é tratado sem a seriedade necessária para a relevância que impõe. Para aprofundar a questão, eu conversei com Daniel Caribé, administrador público, mestre em Administração e doutor em Arquitetura e Urbanismo, em cuja tese, defendida no fim de 2019, estudou a tarifa zero como proposta de política pública. Militante do direito à cidade e pesquisador das formas de gestão e financiamento do transporte coletivo, Daniel compartilha características grandiosas: é baiano e torcedor do Vitória.


Militância pelo transporte público

No fim de 2019, defendi minha tese de doutorado no fim de 2019, em que estudei a tarifa zero como proposta de  politica publica, mas também como estratégia de movimentos sociais em defesa do direito direito à cidade em seu sentido mais radical. Eu comparei o discurso que esta sendo construído no Brasil em torno da tarifa zero e das formas de financiamento do transporte público no geral, com experiências de gratuidade no transporte em comum na Franca.

O tema da cidade sempre foi do meu interesse. Militei próximo dos movimentos sociais de direito a moradia, sempre fui próximo do Movimento Passe Livre. Em 2013 eu fazia parte do Coletivo Tarifa Zero, filiado à Federação de Movimentos Coletivos do Passe Livre. Saí em 2015 por questões internas, eu discordava dos rumos do movimento. O que importa é que foram as mobilizações de 2013 que me motivaram a dar esse giro na minha carreira, a fazer doutorado em Arquitetura e Urbanismo e a entender o que esse movimento estava propondo, e ajudá-lo a conversar com a sociedade e a pensar numa forma de aprofundar sua própria pauta, que é a tarifa zero. E se hoje o transporte público é direito social garantido pela Constituição, junto com saúde e educação e outros, é resultado das mobilizações de 2013.


Milton Santos e a produção dos espaços urbanos

Milton Santos, Daniel Caribé, papo de galo, revista, entrevista,
O baiano Milton Santos é um dos maiores intelectuais da história brasileira.

Milton Santos tem uma teoria chamada dois circuitos da economia urbana. É uma teoria que tenta compreender a produção dos espaços urbanos. Ele queria chamar à atenção de que nos países do terceiro a produção dos espaços urbanos aconteciam de uma forma particular em relação aos países desenvolvidos ou centrais. Ele pontuava o fato de que o espaço é produzido socialmente, não é algo dado. E as cidade são assim. As desigualdades, problemas e questões sociais estão refletidas no espaço.

Então um país que tem uma historia escravocrata como a nossa, machista, com modelo patriarcal predominante, isso vai se refletir no espaço produzido socialmente, nas cidades como estão configuradas.


O transporte como integração

O transporte coletivo é um dos elementos que vai intensificar ou ajudar a resolver esses problemas. No brasil, em especial, temos cidades muito espraiadas, com pouca densidade. Isso tem um impacto significativo em como o transporte é planejado e pensado e como as desigualdades são produzidas ou colocadas nesse espaço urbano.

Segundo Milton Santos, existem no Brasil basicamente dois circuitos – que são plurais, onde cabem diversas formas de viver. Existe o circuito das classes populares, e existe o circuito das classes médias e altas. Esses dois circuitos têm dinâmicas muito distintas. Mas há implicação entre esses dois circuitos, porque o circuito das classes altas  precisa da mão-de-obra das classes populares, e essas classes populares vão aos circuitos superiores através do transporte publico, quando há.

O transporte público no Brasil é pensado exclusivamente para que os trabalhadores só acessem os circuitos superiores como força de trabalho. Eles produzem esses circuitos enquanto trabalhadores, mas eles só usufruem enquanto trabalhadores. Toda sua dinâmica de vida, fora o mundo do trabalho, acontece no circuito inferior.

O transporte público é elemento que permite que o espaço urbano seja um espaço do apartheid, segregado, e quando digo apartheid estou, sim, reafirmando o caráter racial dessa segregação socioespacial, especialmente nas cidades com uma grande população negra, como Salvador. Reafirma-se essa segregação, mas se permite um convívio mínimo para que a reprodução do capital aconteça. E invisibiliza um lado, causando uma alienação desses trabalhadores que produzem na cidade, tantos nos espaços inferiores e superiores.

Não adianta ter um parque, um cinema, um teatro, nos bairros de classe média-alta se não existe transporte público para essas pessoas mais pobres acessarem esses equipamentos, ou mesmo serviços públicos.

Esses meios de locomoção são inacessíveis por diversos motivos, como por conta de segurança pública, por conta de precariedade do sistema, por simplesmente não existir, e por conta do valor praticado da tarifa. A escala enorme das cidades brasileiras exige que o transporte público seja pensado de uma forma ainda mais central. A gente compara muito as cidades brasileiras com as cidades europeias. Isso acontece porque a gente tem o costume de importar ideias e debates e ações que são interessantes, mas que se esbarram na nossa realidade totalmente diferente.

Isso acaba produzindo uma sociedade que não tem espaço público. O espaço publico não é só um equipamento público, uma praça, uma praia. O espaço publico é o lugar onde os diferentes se encontram, se disputam e criam relações de solidariedade e colaboração. No Brasil isso não tem. Pegou-se os diferentes, os mais vulneráveis, dessa cidade formal e os expulsaram. Permitiu-se que eles autoconstruíssem suas cidades na forma de favelas. Favela é uma autoconstrução das cidades. Um processo contraditório de autogestão e de autoprodução, mas que no fundo era uma forma de segregação. E partir do momento em que se produz uma cidade sem espaços públicos, além da autoconstrução, cria-se alternativas de ocupação do espaço, como os rolezinhos, uma reapropriação do espaço publico, no caso, os shoppings.


Integração forçada

Existe um esforço de produzir, de fato, um espaço público no Brasil, mas isso acontece na forma de confronto. Quando se cria uma sociedade apartada espacialmente, sem o encontro entre os diferentes, você acaba propiciando que as desigualdades sociais de todos os tipos, se aprofundem. Porque vai ter classes que, mesmo acessando serviços públicos, vão ter serviços públicos de qualidades diferentes. Essa ausência do encontro é impossível de se concretizar em cidades mais densas. Mas no Brasil se permite construir varias cidades dentro de uma só. Uma cidade dos pobres e uma cidade dos ricos.

Esse é o resultado de uma cidade apartada. Espaços autoconstruídos, sem infraestrutura urbana, sem equipamentos públicos e relegados a populações descendentes de processos de espoliação urbana muito profundos, derivados muitas vezes de processos escravocratas. Dai o seu caráter também ser racial.

Mas não só racial, porque a questão racial no Brasil e a formação da classe trabalhadora se imbricam profundamente. Nós temos trabalhadores qualificados e não qualificados, e os trabalhadores qualificados costumam ter a pele mais clara. Assim, se produz uma sociedade que não pensa em como unificar esses espaços de novo, como superar essa fragmentação socioespacial e construir um espaço público verdadeiro, que assuma que temos uma sociedade de classes, com diferenças profundas, mas que construa também espaços onde essas diferenças profundas possam, de alguma forma, conviver para criar uma linguagem comum. No Brasil, tem-se a linguagem das classes populares, e a linguagem das classes superiores. Não à toa a musica popular brasileira é praticamente toda popular. Porque ela teve esse apartamento socioespacial que produziu um pais à parte, para o bom e para o ruim. Culturalmente, somos ricos por causa disso, mas socialmente temos um pais segregado, de desigualdades. E muito dos preconceitos e do racismo vem disso.


O custo do transporte nas famílias

Segundo dados da POF (Pesquisa de Orçamento Familiar), mais recente, divulgada em 2019, o transporte é o segundo maior peso no consumo das famílias, atrás apenas de habitação. Ou seja, as famílias hoje gastam mais com transporte do que com alimentação. Isso é o dado que reflete p absurdo do país. E tem-se um número crescente de pessoas que estão imóveis, isoladas. Temos um grupo, portanto, que sequer gasta com transporte coletivo, que são as pessoas mais pobres.

Uma vez que se tem um valor no geral que se aproxima de 20% de gasto com transporte e tem-se uma população mais pobre que sequer gasta porque não tem condições, vê-se o absurdo da forma como é pensado o transporte público brasileiro. O peso do transporte público nos orçamentos familiares no Brasil é uma aberração.


Gargalo da gestão pública

Transporte  não é só uma questão é uma questão socialmente social e política mas é também uma questão de gestão pública. A gestão pública reflete essa forma de pensar a sociedade brasileira desigual e elitista. Deu-se aos municípios no Brasil uma autonomia que aparentemente é aparentemente inédita no mundo, mas tem muito município que não tem capacidade de implementar políticas públicas do tipo da mobilidade urbana que exige uma parte de recursos e uma capacidade gerencial muito além de suas capacidades. E aí você vai resolvendo esses gargalos de gestão e financiamento através dos pactos federativos. A saúde e a educação, por exemplo, têm fundos, ou seja, têm arranjos federativos com participação dos governos federal, estadual e municipal, que acaba executando essa política. Mas isso não ocorre no transporte público.

Quer dizer, transporte é um direito social e obrigação dos municípios, mas não há como os municípios brasileiros podem ter um transporte público de qualidade do país. Outro fator complicador são as regiões metropolitanas, ou seja, municípios não cabem em si e estão fortemente interligados, conurbados com outros. Mas todos os municípios são entes federativos autônomos. Não tem forma de obrigar que os municípios se pensem para além de seus limites. Por exemplo, em Salvador a gente tem entidade Metropolitana que é um instrumento controverso do qual a prefeitura de Salvador não participa. Uma entidade metropolitana pode gerenciar os serviços públicos, não só o Transporte, como também saneamento básico, coleta de lixo abastecimento de agua, enfim, é entidade que pode pensar políticas coletivamente. Com isso, ganha-se escala e capacidade gerencial. Mas eventuais diferenças políticas impedem essa união. Principalmente por isso o debate sobre a constituição das metrópoles brasileiras enquanto sujeito provido de autonomia, é importante.


O improviso formalizado

Tem um exemplo que mostra como é errado não pensar integralmente a região metropolitana. Em Salvador, há integração do transporte metropolitano, mas somente com o metrô. O transporte urbano coletivo das cidades não está integrado. Mas o metrô é metropolitano. Aí o morador de Camaçari, para não pagar uma passagem a mais, vai de ônibus, por exemplo, até a Estação Mussurunga, atravessa a passarela até o metrô, bate o seu cartão, e volta para estação de ônibus para poder bater o cartão no transporte de Salvador.

Daniel Caribé, Salvador, amarelinho, transporte público,

Outro exemplo é o do amarelinho, um ônibus de pequeno porte que atende os bairros populares, mais vulneráveis e periféricos, de Salvador. Por serem menores, conseguem entrar em ruas mais estreitas, e funcionam com escala menor, precisando de menos público para se tornarem viáveis. O amarelinho é, portanto, improviso fruto da necessidade e de buracos no transporte formal. Até 2020, os amarelinhos não estavam integrados ao sistema de transporte coletivo de Salvador. Antes, então, a população periférica ou tinha que andar ate uma rua principal para acessar um ônibus do sistema integrado, se quisesse usar o amarelinho, teria que pagar outra passagem depois. Eles estavam falindo, porque as pessoas mais vulneráveis, que são seus clientes, não poderiam pagar duas passagens, quando, de fato, não poderiam pagar nem por um.


O financiamento do transporte

A forma como é financiado o transporte público brasileiro é uma aberração. Não existe nenhum outro lugar do mundo onde possamos encontrar serviços públicos de qualidade que não sejam subsidiados. Na pior das hipóteses, encontramos uma divisão de 1/3 para cada grupo social, digamos assim. 1/3 financiado pelas tarifas, 1/3 dos orçamentos públicos, 1/3 vem da destinação especifica da arrecadação  de impostos daqueles que se beneficiam diretamente, mesmo não o utilizando. Os custos do transporte público são repartidos por toda a sociedade porque se entende que traz benefícios para toda a sociedade, independentemente de eu ser um usuário ou não. Por exemplo, um empresário se beneficia do transporte público porque os trabalhadores chegam ao seu estabelecimento e voltam pra suas casas através do transporte público. O mesmo vale para consumidores. O usuário de automóvel não enfrenta mais engarrafamentos porque parte da população usa os meios coletivos.

Mas enquanto o transporte público beneficia a todos, ele só é financiado pelos mais pobres. Essa divisão se estabelece mesmo entre aqueles que são usuários. Porque os trabalhadores informais pagam a tarifa cheia, e eles são mais pobres que os trabalhadores formais, que pagam parte da tarifa por conta do vale transporte, que é a única politica brasileira que pensa a repartição do custo do transporte entre trabalhadores e patrões. Mas é exclusivamente para o trabalhador ir e voltar do trabalho.

O sistema de transporte público, portanto, é extremamente injusto na sua forma de financiamento. Salvo raras exceções que oferecem subsídios, como São Paulo e Brasília, a única forma de arrecadação é a tarifa. Então o empresário tem que pensar em estratégias para aumentar a arrecadação. Como linhas esdrúxulas, que fazem ziguezagues recolhendo usuários dentro das comunidades. O objetivo é superlotar os ônibus ao máximo, priorizando horário de pico, para aumentar a receita. Há incentivos, portanto, para a formação de linhas ineficientes, abandonos de territórios por falta de demanda, e são incentivados a aumentar a tarifa e a superlotar os ônibus.

O caso do transporte público deveria ser similar ao do sistema único de saúde. A eventual arrecadação tarifária não fica como o operador do serviço, ela vai para um fundo de compensação gerido de forma pública e órgãos públicos pagam para as concessionárias pela linha, como uma espécie de frete garantido, independentemente da quantidade de usuários em cada viagem.

Historicamente, o transporte público é pensado para servir aos empregadores. Temos, portanto, que onerar essas empresas e romper com a lógica de financiar o sistema publico através unicamente da passagem. A arrecadação tarifária, se houver, deve ser para diminuir o custo do sistema como um todo. Outra questão importante é que o transporte público brasileiro acaba sendo parte de diversas outras políticas públicas mas esses outros fundos não participam do seu financiamento. Por exemplo, o estudante paga meia passagem, mas o MEC não participa do financiamento. Aposentados não pagam pelo TP, mas a seguridade social não participa do financiamento. Policiais acessavam o TP de forma gratuita, mas as secretarias estaduais de segurança não participavam do financiamento. Usa-se o transporte público como política de justiça social, como essas gratuidades, e isso é correto que seja feito, mas joga-se o custo para cima dos mais pobres, o que não pode ocorrer. A isso chamamos de subsidio cruzado cruel.


Transporte como política pública

As prefeituras não têm conhecimento pra gerir o transporte público. Elas abriram mão disso. A partir do momen

to que encerraram suas empresas públicas de transporte, deixaram de ter qualquer controle sobre o negócio, que passou a ser visto como atividade meramente comercial. A politica de mobilidade urbana só surge como lei em 2012. O transporte só vira direito social em 2015 e a exigência de planos de mobilidade urbana sequer é respeitado. Prefei-turas realizam esses planos de mobilidade urbana por conta da vinculação do plano à capacitação de recursos. Mas estes sequer são pensados a serem implementados de fato, muito menos de uma forma democrática e participativa. Foram criados novos instrumentos pra gerenciar a mobilidade urbana, como os conselhos de transporte das cidades, os planos diretores, os planos de mobilidade, as leis de licitações. Entretanto, mudou-se pouco a realidade do transporte público brasileiro. Mas esta realidade vai ter que mudar, não por conta desses instrumentos, mas por conta de uma crise de mobilidade urbana que já vinha acontecendo nas ultimas décadas.


Crise e colapso?

O transporte público vem perdendo usuários a cada ano, por diversos motivos. Um deles é a pobreza. as pessoas estão ficando cada dia mais imóveis, e isso é um grave problema social. Em Salvador, quase 30% da população não usa ônibus porque não tem dinheiro. Além disso, tem-se o incentivo ao automóvel particular, através da desoneração fiscal, que fez com que a população se endividasse para compra de automóvel particular; temos também novas tecnologias, como transporte por aplicativo, que capturaram parte significativa do transporte, exatamente aqueles que podem pagar por ele.

A gente tem essa crises desenhada. O setor pressionando o governo por subsídios, e aí, durante a pandemia, os usuários caem 70%, mas é obrigado a manter uma parcela dos ônibus circulando pela cidade. O resultado disso é falência. Em Salvador, um dos consórcios já faliu. Com isso, cada aumento tarifário é um passo em direção ao abismo. Porque a gente esta dentro de um arranjo que é inviável, e que em vez de resolver, estamos aprofundando. A cada aumento, temos menos usuários, uma questão de curva de demanda: cada x% aumento tarifário você afasta x% mais um pouquinho de usuários. Com isso, você gera menos receita para o sistema quando se aumenta a tarifa. A gente corre o risco de chegar a 2021 sem um transporte público nas grandes cidades brasileiras. As empresas não vão aguentar. E vai entrar em colapso porque, entre os entes federativos, o único que pode subsidiar o transporte é a união. E a união está pouco se preocupando com a crise no país, está na logica de quanto mais caos, melhor. E se vale do argumento da austeridade fiscal para se eximir de responsabilidades.

As prefeituras não tem capacidade para resolver esse problema, nem interesse nem conhecimento. Também não temos entidades metropolitanas com poderes suficientes para gerenciar o tema, porque não existem como entes federativos. Já os governos estaduais têm problemas fiscais gravíssimos, vários em situação calamitosa. E na sociedade, não estamos elaborando uma alternativa que convença a população a lutar por uma nova forma de gestão e financiamento do transporte público. Tem que se pensar numa alternativa para além de uma solução estritamente estatal ou empresarial, mas uma que seja comum, ou seja, que empresas e Estado estejam submetidos a um controle popular coletivo. Falta inteligência e interesse para se elaborar uma solução criativa e viável, que pense o transporte como direito social e como instrumento de integração social, visando construir espaços de fato público, onde as pessoas se encontrem. O transporte é fundamental nesse sentido, pois permite o encontro, permite que a gente se veja como sociedade desigual e não-racista. Não existe movimento nesse sentido de repensar o transporte, mas isso vai ter que acontecer na marra, pelo risco de falência do sistema no país.


Tarifa zero: é possível?

A tarifa zero existe em vários lugares, inclusive no Brasil, em cidades de médio porte. Mas na Europa, há cidades muito maiores com tarifa zero. É política que vem servindo para vários propósitos, inclusive como recuperação econômica. Algumas cidades no Brasil usam a tarifa zero como instrumento de concorrência contra municípios vizinhos, pois quando se implementa tarifa zero, reduz-se o custo das empresas para operar naquele território. Funciona, portanto, como desoneração fiscal a empresas.

Outras cidades europeias, por exemplo, têm um fenômeno interessante que é a desertificação das cidades. As populações saem dos centros históricos e vão morar nas periferias, que não são exclusivamente para os pobres, são também para as classes altas, e os centros das cidades vão sendo desertificados. Estão implementando a tarifa zero para atrair a população de novo pro centro das cidade e com isso repovoar e revitalizar esses centros abandonados.

Porque estou dando esses exemplos? Pra mostrar que tarifa zero não é uma política revolucionaria, ela não é política disruptiva, é plenamente inserida ao capitalismo. É preciso pensar a tarifa zero para além do acesso ao transporte, mas como uma política de reapropriação das cidades. Envolve também a questão de ocupação e uso do solo.

Mas a tarifa zero também é usada como política de distribuição de renda. Uma renda extra fornecida às camas mais vulneráveis da sociedade para poderem participar da sociedade, dessas cidades que são produzidas coletivamente. Tarifa zero existe, é possível, e tem vários significados até aqueles mais revolucionários de reapropriação plena dos espaços urbanos.

As formas financiamento são muitas. A principal é dos orçamentos municipais, deve ocorrer também através de uma política de reforma tributária que onere mais aqueles que podem mais e menos quem pode menos, ou seja, uma política tarifária de caráter progressivo.


Mito do pedágio urbano

Muita gente defende também o pedágio urbano e o aumento de impostos sobre combustíveis. Mas os carros hoje em dia não são apenas instrumentos de diferenciação social. Carros são principalmente instrumentos de mobilidade urbana das classes populares. Você morar perto do trabalho é um privilégio. A maioria das pessoas mora na periferia, longe dos seus empregos e precisam do carro pra se deslocar. A partir do momento que se propõe sobretaxar esses trabalhadores que vêm de longe pra acessar os centros das cidades através do pedágio urbano, está se relegando essas pessoas ainda mais a um processo de exclusão social. Esta cobrança adicional não vai subsidiar o transporte, não vai resolver um problema de reapropriação de uso do espaço público e vai ainda piorar a situação de vida das camadas mais populares.

O pedágio urbano surge no bojo de venda das cidades. Londres, por exemplo, implementa o pedágio urbano no contexto do neoliberalismo. Não é um processo de socialização do espaço público, pelo contrario, é um processo de mercantilização do espaço público. Então a gente precisa tirar os carros das vias, torná-las de uso mais coletivo através do transporte e dos meios ativos, como caminhadas e bicicletas, mas primeiro a gente precisa fornecer transporte publico de qualidade. Não dá pra inibir o aceso ao espaço público e não fornecer nada em contrapartida antes. Porque primeiro não vai conseguir, as pessoas não vão deixar de usar o carro, só vão ter o seu acesso ainda mais dificultado. Aliás, não tem uma pesquisa que mostre que o pedágio urbano é uma fonte suficiente de arrecadação para viabilizar um transporte público de qualidade. As pessoas acabam reproduzindo essa alternativa do pedágio urbano sem se ater aos estudos de viabilidade e impacto disso. Nada comprova que o pedágio urbano é um instrumento de justiça social. Mas as pessoas continuam defendendo.

O pedágio urbano só se torna uma fonte de receita significativa se a gente tiver um espaço super segregado e um transporte de péssima qualidade, porque as pessoas seriam obrigadas a usar o carro particular, mesmo pagando a mais.

Em salvador, chegaram a propor uma via pedagiada. Isso seria uma forma de privatização e mercantilização da cidade. Mas ao mesmo tempo, quem lutou contra o pedágio urbano da Linha Viva defendeu outras formas de pedágio urbano. Um discurso contraditório, porque se repete coisas sem se debruçar nos impactos dessas alternativas.

E vem de uma compreensão meio fetichista do automóvel. A gente acusa as classes altas de terem um fetiche do automóvel, de usarem o automóvel como elemento de diferenciação e de segregação social, mas ao mesmo tempo a gente fetichiza o carro de forma invertida, achando que o carro por si produz o espaço urbano, quando não é o carro que produz o espaço urbano. O carro é somente um instrumento. Quem produz o espaço urbano são as pessoas.

As famílias estão endividadas comprando carro e motocicletas. Um carro numa família periférica não é instrumento individual, mas coletivo. Ele é usado para tudo, inclusive para ser emprestado. Existe um compartilhamento daquele automóvel. Não é à toa que surge o transporte por aplicativo, que nada mais é do que a captura do uso coletivo do automóvel. Há, portanto, uma incompreensão do que significa os automóveis para as camadas mais populares.

A gente tem que estar atento para não defender alternativas importadas que não foram testadas em larga escala. E também tendemos a olhar somente o lado bom, ignorando o que dá errado das ações que queremos importar.

Mais do que pedágio urbano e mobilidade ativa, em Salvador tem que se lutar por elevadores, por transporte marítimo e coletivo de outros modais. Tem que defender mobilidade ativa, o que eu apoio, mas a gente precisa ser mais criativo, buscar soluções nossas, e soluções integradas, que é o mais importante.

Temos, fora da esfera estritamente política, capacidade plena de criar soluções nossas. Temos criatividade e conhecimento para isso. Precisamos pensar no país e nas cidades de outras formas, num novo pacto federativo, numa nova formação politica e institucional.

A desigualdade social não vai ser resolvida pelo consumo e isso se reflete profundamente na produção do espaço urbano.


Entrevista publicado com exclusividade na Papo de Galo_ revista #9, páginas 64-74.


eleições, controladoria, FPM, município, política, política pública, papo de galo, revista, Gabriel Galo, Fernanda Galvão, Davi Carlos, Durval Lucas, Marcos Silveira, Juan Medeiros, Edmar Braga, Daniel Caribé, Rogério Barrios, entrevista, artigo, ensaio, análise, Galo Consultoria
Capa da edição #9 da Papo de Galo_ revista sobre o papel do município na política.

Assine nossa newsletter!

Conteúdo exclusivo e 100% autoral, direto no seu email.


Apoie!

Antes de você sair…. Tudo o que você lê, ouve e assiste aqui no Papo de Galo é essencialmente grátis. Inclusive o que escreve em outros lugares vêm pra cá, sem paywall. Mas vem muito mais pela frente! Os planos para criar cada vez mais conteúdo exclusivo e 100% autoral são muitos: a Papo de Galo_ revista é só o primeiro passo. Vem por aí podcasts, vídeos, séries… não há limites para o que pode ser feito! Mas para isso eu preciso muito de sua ajuda.

Você pode contribuir de diversas maneiras. O mais rápido e simples: assinando a nossa newsletter. Isso abre a porta pra gente chegar diretamente até você, sem cliques adicionais. Tem mais. Você pode compartilhar este artigo com seus amigos, por exemplo. É fácil, e os botões estão logo aqui abaixo. Você também pode seguir a gente nas redes sociais (no Facebook AQUI e AQUI, no Instagram AQUI e AQUI e, principalmente, no Twitter, minha rede social favorita, AQUI). Mais do que seguir, participe dos debates, comentando, compartilhando, convidando outras pessoas. Com isso, o que a gente faz aqui ganha mais alcance, mais visibilidade. Ah! E meus livros estão na Amazon, esperando seu Kindle pra ser baixado.

Mas tem algo ainda mais poderoso. Se você gosta do que eu escrevo, você pode contribuir com uma quantia que puder e não vá lhe fazer falta. Estas pequenas doações muito ajudam a todos nós e cria um compromisso de permanecer produzindo, sem abrir mão da qualidade e da postura firme nos nossos ideais. Com isso, você incentiva a mídia independente e se torna apoiador do pequeno produtor de informações. E eu agradeço imensamente. Aqui você acessa e apoia minha vaquinha virtual no no Apoia.se.


Ver Comentários (0)

Deixe um comentário

Seu e-mail jamais será publicado.

© Papo de Galo, desde 2009. Gabriel Galo, desde 1982.