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Ignorância é o dia

Ignorância é o dia

O dia nasceu de um azul estonteante.

Que horror. Erguia-se o brilho com beleza ignorante, soberbo e desprezando o momento.

Na praça em frente da janela, de onde observo entre paredes de frio cimento, crianças brincam. Uma senhora passeia com seu cachorro, teclando sei-lás no celular, coleira navegando o rabo-abanante bicho. O ônibus na avenida lá pra direita passa cheio. Rostos só de olhos, mãos e suor no pano.

Como não estamos todos no limite da indignação? Ou esta já foi, por cansados e necessitados?

O vento úmido da noite foi prenúncio de um dia seguinte mais adequado. Nuvens acinzentavam o cenário. As crianças, talvez com medo da chuva que pingava leve e sem vontade, recolheram-se. Nos ônibus, corpos menos suados.

Por entre a cortina da janela, invisível, fito uma pequena planta na praça em frente. Perseverante, cresce por entre frestas. Cada gota de chuva que nela se cai, amplia seu verde.

Que horror. Erguia-se frágil e com beleza ignorante, soberba e desprezando o momento.

Será ela incapaz de compreender o seu destino, de plantinha insignificante, talvez daninha, certamente ignorada?

Mais um dia regressa, de sol escaldante, belo e inapelável. Crianças e suas zoadas, ônibus cheios de olhos sem bocas, o cachorrinho que deixa seus dejetos, de dona que finge não ver, imersa em seus mais necessários toques no smartphone.

Menciono reclamar, como se do além a vigília profanando a culpa viesse para repreender o horror com o cotidiano tão simplesmente ignorante, tão irritantemente constante.

De longe vem o grupo. Vestes de tecido pesado. Vassouras, pás, carrinhos. Retiram plásticos, bitucas, folhas, o excremento do cachorro – quero gritar que este não, falta a lição – e o que mais encontram, relocando os restos para o saco do fim.

Um porta uma enxada. Sinto meu pulsar alinhado ao labor de cortar pela raiz um insolente soerguido onde não deve. Avista o alvo, e minha respiração cessa.

Numa enxadada precisa, a plantinha improvável, robusta em verde, ignorante ao extremo, encontra seu destino provável. Outros clinques metálicos se seguem, como se a extirpar possibilidade de vida.

Penso gritar.

Mas quem há de enternecer-se por vida tão sem sentido?

Que horror.


Crônica especialmente escrita para a série “Um, dois textando“. Visite a página do Instagram!


Crônica publicada na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 52 e 53.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

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