A decisão sobre ter ou não a festa na segunda-feira, 02 de julho, foi tomada não sem muito peso na consciência. Jamile e Benício, o casal anti-Copa, sofreram. Afinal, como apoiar tão arduamente um país exportador de gente querendo ganhar a vida no grande e otimizado Estados Unidos? Ficaria manchado o discurso com a tinta inlavavél da hipocrisia?
Debateram enfaticamente. Olharam por cima e por baixo, pelos lados, por fora e por dentro, procurando porquês e inconsistências. Ao final, empenharam-se em manter sua brava luta de protestar contra a Copa do Mundo. É preciso quebrar alguns ovos para se fazer uma omelete. Providências cabíveis para amenizar a situação foram tomadas. Para não envergonhar o grande líder, o irmão Amorim -ave, Ricardo!-, removeram seu quadro, dedos e mão apoiando o queixo com um ar de intelectual inegável. Imaginaram que ele passaria mal só de ver tanta terceiro-mundice junta. Brasil… México… Argh!
Mais uma vez anfitriões de uma sonora festa em seu apartamento, capricharam. Primeiro, por conta do novo corte de gente. Desta feita, todos aqueles com crianças foram excluídos.
– Cambada insolente! Tudo bem ser criança, mas eles têm que saber o lugar deles!
– Isso aí é criação. Coisa de pai e mãe fracos.
Mais do que a ultra seletividade recém ampliada, o cardápio estava delicioso. Tacos, burritos, feijão ao chili. Tequilas foram compradas, mas como bons brasileiros, eram misturadas em caipirinhas mexicanas feitas com adoçante. O que eles de antemão sabiam que seria alvo de controvérsias era a troca da cerveja. Substituição: saem as lager topzera da Bélgica, vinham as aguadas mexicanas, com direito a limãozinho dentro e guardanapo no gargalo para não molharem os preciosos dedinhos de seus convidados, sem esquecer da enroladinha na ponta. Quanto zelo! De decoração, uma caveira enfeitada ganhava destaque na mesa de canto do lado do sofá. Lembrava do Dia de los Muertos, “porque muertos están todos en Brasil”. No home theater uma playlist de mariachis tocava sem parar.
Esparramaram provocações em todos os cantos. Faixas penduradas com exaltações ao país da América Central exibiam o poder criativo de Jamile e Benício:
– Roberto Bolaños > Renato Aragão
– Thalía > Xuxa
– Maria do Bairro > Avenida Brasil
– Carrossel > Malhação
Os amigos chegam. Apenas quatro casais além deles, aqueles mais confiáveis. Não hão de falhar!
O jogo começa com o México em cima. A torcida grita olé no estádio. Os dez amigos ensaiam uma ola na sala do apartamento, num indo e vindo infinito. “Arriba, México! Bamos!” alguém grita, para ser replicado quase em uníssono num gritinho estridente, “Ay, ay, ay, ay!” Depois do início sob pressão, a seleção brasileira se ajusta. Oferece perigo, mas o zero a zero perdura.
O primeiro tempo acaba para a já tradicional resenha no balcão da cozinha americana. Sentam-se nas banquetas de pintura metálica a discutir sobre a tática do México, as eleições vindouras, Tite, Neymar, Casemiro. Um deles dá um gole na cerveja dessaborizada fazendo cara feia. Sente saudade daquela belga topíssima, que quando gelada é o real líquido sagrado do Olimpo. Não deixa transparecer o pensamento que o invadiu de supetão: seria melhor que Brasil e Bélgica avançassem e poder tomar sua cerveja decente em paz. “Desconjuro!”, afasta o mau agouro como se acordando de um sonho. Faminto, buscou uma tortilla e a mergulhou num pote de guacamole em pedra dura, tanto bate até que fura.
Logo na largada do segundo tempo, Neymar se estica todo e faz um a zero. Desespero na sala de Jamile e Benício. “Até pra fazer gol o cara faz deitado!” O 10 de amarelo é caçado em campo. É pontapé daqui, pisão dali, locutores implorando cartão pro árbitro. Era a deixa que bastava para que cantassem o mantra maior que consagrou aquele grupo tão unido: JUIZ LADRÃO! SAÚDE E EDUCAÇÃO!
A partida prossegue sem qualquer risco de o México causar uma zebra. Pelo contrário, o Brasil domina, “como dominado é o povo brasileiro”. No fim, Firmino brilha mais que seus dentes, empurra a pelota pra dentro e dá números finais ao placar.
Um sopro de empolgação tomou conta de todos. Havia uma clara excitação no ar. Não, não era pela garantida vitória brasileira. Estavam cientes do papel que cabe a eles exercer. A empolgação vinha da esperança de que a Bélgica garantisse seu favoritismo. Era, enfim, a eliminação prevista para o Brasil na próxima fase com direito a gritos exaltando IDHs avançados, corrupção inexistente, a volta das lager topzera, do sapatênis, do suéter no ombro, da geral cafonice chique-brega da classe média que se acha elite. Se era para perder, que se perdesse para quem eles sempre olharam com profunda admiração. Ah, a Bélgica!
Cuidando para não ser pego chorando, Juca passa a mão no rosto. Alcira, sua namorada, vê e pergunta se está tudo bem. Ele diz que sim. “Fico pensando na Bélgica e na surra que o Brasil vai tomar. Finalmente o país vai voltar a pensar somente em coisas importantes! Chega!”
Já Jamile e Benício, o casal anti-Copa, estão contentes. Depois de duas festas em que imprevistos foram muitos e a resiliência do bando foi testada com força, esta correu tranquilamente. Despedem-se dos amigos com um largo sorriso de quem, sádico e moribundo, vê o fim próximo. Suspiram entre si.
– Ah, perder pra Bélgica… Que sonho!
– Sexta-feira, 3 horas da tarde. Temos que chamar muito mais gente.
– Uma pena esse horário péssimo. Um incentivo para esses trabalhadores que adoram uma desculpa para ficarem de perna pra cima não trabalharem!
– Aposto que já vão emendar direto pro fim de semana.
– Deus não pode dar asa a cobra.
– Não. Por isso precisamos que este pão e circo termine logo.
– Aliás, eu tava aqui pensado… A gente fica falando da Bélgica, mas e se o Japão aprontar?
– E daí que tanto faz. O IDH é maior ainda!
– Mas não tem as lager top, né?
– Isso é…
– Mas há tudo de correr bem!
– Sim, a nossa Bélgica não vai de nos decepcionar!
– Não, jamais! Façamos a nossa parte!
– Aliás já tô vendo aqui, ó. Chocolate belga, waffle. Não foram eles que inventaram, mas fica um menu de doce que é uma beleza.
– Ih, olha isso aqui! Parece também que a batata frita veio de lá!
– Jura? Sério?
– Sério!
– Meu, olha que mundo maravilhoso. Batata frita que hoje é o prato símbolo dos Estados Unidos, nossa pátria mãe!
– Mas é uma pena que nosso regime não permite… E já vou avisando: se é pra ter essas porcarias, melhor que seja tudo orgânico, batatas plantadas ao som de música clássica e chocolate 85% cacau.
– Tudo por você, meu amor.
Eles choram abraçados. Sexta-feira próxima indica ser um dia épico na história deste impertinente casal.
Crônica publicada no HuffPost Brasil. Link AQUI.
Episódio 1: Jamile e Benício, o casal anti-Copa