Por definição, um hospital de campanha é uma destacamento móvel de atendimento médico.
No primeiro capítulo de seu livro “Field Hospitals: A Comprehensive Guide to Preparation and Operation” (Hospitais de Campanha: um guia completo de preparação e operação”, em tradução livre), Eran Dolev escreve:
A ideia do hospital de campanha foi concebida de forma independente em vários exércitos, em diferentes épocas, como uma resposta às necessidades médicas das tropas que servem em áreas remotas. A princípio, seu objetivo era cuidar de soldados doentes. Então, paralelamente a vários desenvolvimentos na medicina, especialmente na cirurgia, sua missão cardinal se voltou para salvar vidas e prevenir amputações em feridos de batalhas. As principais virtudes do hospital de campo sempre foram sua mobilidade e a capacidade de sua equipe de ressuscitar e operar em baixas de batalhas, perto da linha de frente. Por outro lado, seus vícios inerentes são sua vulnerabilidade ao fogo inimigo e sua incapacidade de manter pacientes operados por períodos adequados de tempo. No entanto, o hospital de campanha é a pedra angular da cadeia de responsabilidade médica no campo de batalha. A história do hospital militar de campo é, em grande parte, a história da medicina militar, refletindo a simbiose entre tratamento cirúrgico e evacuação médica.”
Originalmente, hospitais de campanha são, portanto, frutos de corpos militares. Socorrer os feridos dos campos de batalha era fundamental para era reabilitar os soldados para voltarem ao combate o quanto antes─se isso fosse possível.
Em seus primórdios, conforme a tecnologia e transporte da época, eram acampamentos precários. O comboio médico seguia as linhas armadas, artilharia e infantaria, alguns quilômetros atrás, ocupando espaço montado de acordo com a evolução territorial.
Com o tempo, o modelo de hospitais de campanha se tornou valioso para outras situações. Um fator une todas ela: a tragédia.
Seja por eventos meramente naturais, como terremotos, tsunamis, furacões e doenças, ou seja por ações diretas do homem, como guerras, acidentes de grandes proporções ou até mesmo doenças sintetizadas, hospitais de campanha são recurso de rápida implantação e rápido desmonte, feitos para suprir uma demanda pontual.
O fator tragédia é premissa fundamental para entender os horrores de um hospital de campanha. A Dra Emily Mayhew, autora de “Wounded: the Long Journey Home from the Great War” (Feridos: a longa jornada de volta pra casa depois da Grande Guerra”, em tradução livre), escreveu um artigo para a British Library intitulado “How would it fell to be a wounded soldier” (Como alguém se sentiria sendo um soldado ferido, em tradução livre), descrevendo cenários e sensações de um soldado ferido em 1916, durante a Primeira Grande Guerra:
Muitos soldados feridos no campo de batalha perderam a consciência ou ficaram desorientados pela explosão de uma bomba ou pelo impacto de balas e fragmentos de artilharia em seus corpos. Quando finalmente conseguiram se concentrar, a primeira coisa que eles queriam saber era onde estavam e há quanto tempo estavam inconscientes.
Nos minutos ou horas antes da ajuda médica chegar até eles, soldados feridos tentariam descobrir onde estavam seus ferimentos e quão sérios eles poderiam ser. Ao se moverem, sentiriam a dor total de sua lesão – às vezes, uma dor tão avassaladora que perderiam a consciência novamente. Esse movimento dentro e fora da consciência geralmente durava horas.
A ajuda vinha na forma de maqueiros. (Hoje nós os chamamos de paramédicos ou combatemos técnicos médicos.) O trabalho deles era encontrar os soldados feridos – às vezes ouvindo seus gritos – e levá-los em segurança. Os maqueiros tinham que ser fortes, muito habilidosos em primeiros socorros e muito corajosos. Eles entravam no campo de batalha sob fogo pesado, sem armas, e tinham que se concentrar nos feridos, em vez de se manterem seguros. Para muitos soldados, a visão do resgate era carregada de emoções e eles gritavam novamente.
No hospital de campanha, as vítimas receberiam tratamento e cirurgia para seus ferimentos. Em suas vidas civis, a maioria dos cirurgiões não fez tantas amputações em um ano quanto em um único dia em um hospital militar de campanha. Após a amputação, assim como no momento em que foram feridos, os soldados – agora pacientes – despertariam e mais uma vez tentariam descobrir o que estava acontecendo ao seu redor. Para alguns, isso significava olhar-se em uma cama de hospital e perceber que perderam membros, ou talvez que tinham perdido a visão.
Qualquer que fosse a natureza de seus ferimentos, a primeira pessoa que um soldado conheceria nesse momento traumático seria uma das enfermeiras que trabalhava no hospital de campanha. O trabalho da enfermeira era esperar que o paciente recuperasse a consciência após a cirurgia e depois explicar muito gentilmente o que havia acontecido com ele. Mais uma vez o soldado pode gritar de medo e dor. A medicação para a dor poderia ajudar os sintomas físicos, mas fazia parte do trabalho da enfermeira tentar aliviar o sofrimento psicológico de seu paciente.
As enfermeiras levavam essa responsabilidade a sério. Eles tentavam pensar em maneiras de ajudar seus pacientes a aceitar suas novas vidas. Uma dessas maneiras era ajudar os pacientes a manter suas famílias informadas. Os enfermeiros costumavam escrever cartas aos pais e outros parentes de seus pacientes explicando o que havia acontecido.
As habilidades de enfermeiras, maqueiros e cirurgiões perto dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial foram cruciais para salvar a vida de milhões de soldados feridos. Mas não eram apenas as habilidades técnicas médicas que importavam. Era também a capacidade deles de entender como eram os primeiros momentos depois de acordar para uma pessoa cuja vida nunca mais seria a mesma. Não importa quando ou onde, esses momentos são os mesmos para todos os seres humanos feridos. As vozes daqueles que sofreram e dos que trataram o sofrimento são tão importantes agora como eram há um século. Ouvi-los nos ajuda a entender o terror e o desespero daqueles que estão feridos hoje.
Embora os hospitais de campanha tenham evoluído significativamente desde então, a perspectiva do horror com a tragédia não se altera. Em reportagem do Jornal da Band, Claudio Aparecido, paciente do hospital de campanha do Pacaembu, resume o que se passa na cabeça de alguém ao se ver dando entrada numa instalação feita para a emergência:
Sentimento de que você vai morrer. Você acha que vai morrer. A única sensação nas primeiras horas é a de que você vai morrer.”
Imediatamente depois, completa que pode também ser um sinal de esperança:
Aqui tem mais estrutura, né? Porque lá no Taipas, onde eu estava, não tem a estrutura que tem aqui.
A partir dos relatos mencionados, pode-se entender que:
- Hospitais de campanha são recursos necessários na tragédia. Ou seja, sua existência é sinônimo de problemas graves.
- Ver-se ferido ou doente com efeito direto pela tragédia, gera um primeiro sentimento de compreensão da extensão do problema.
- Ser encaminhado para um hospital de campanha gera o entendimento de estar sendo enviado à morte.
- A evolução do tratamento e a comparação com o local de origem podem mudar a percepção dos pacientes. Casos de sucesso aumentam o moral de todos, mesmo diante da tragédia.
- Ter alta de um hospital de campanha é como se o paciente estivesse assinando o atestado de sobrevivência maior. Quem passou por um hospital de campanha, viu de perto o auge da tragédia.
- O aspecto humano e de respeito ao paciente e à tragédia em si é fundamental para a recuperação não somente dos pacientes, mas do local onde ele está inserido.
- Elementos de distanciamento dos pacientes com relação à tragédia é fundamental para minimizar seus efeitos, como se estivesse passando a mensagem de que “a vida continua”. Pode acontecer de diversas formas, com música, jogos, animais domésticos e contato com parentes.
Esta é a parte 1 de 8 de matéria publicada com exclusividade na Papo de Galo_ revista #5. (Páginas 9-13)
_ HOSPITAIS DE CAMPANHA
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