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Vacina obrigatória: o que está em jogo?

Vacina obrigatória: o que está em jogo?


O decreto de atuação contra a pandemia e a vacina obrigatória

Em 5 de fevereiro de 2020, o Governo Federal escreveu o projeto de lei nº23 de 2020. A tramitação ocorreu em regime de urgência. O texto da ementa lista suas aplicações, dentre elas, a possibilidade de vacina obrigatória para a Covid-19:

Ementa:
Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

Explicação da Ementa:
Estabelece medidas emergenciais para enfrentamento do “coronavírus”; prevê e regulamenta as medidas de isolamento, quarentena, determinação compulsória de submissão a procedimentos médicos, restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País; permite a importação de fármacos sem prévio registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária; e designa direitos às pessoas que sejam afetadas por alguma das medidas previstas no projeto de lei.

Note-se o trecho da explicação da ementa: determinação compulsória de submissão a procedimentos médicos. Não havendo exceção a esta regra, a vacinação, portanto, estaria declarada como obrigatória, uma vez aprovados os estudos. Era, todavia, ainda cedo para que uma vacina ficasse pronta. O PL foi promulgado no dia seguinte, sob a Lei nº 13.979 de 06 de fevereiro de 2020, com assinatura do presidente em divulgação no Diário Oficial da União de 07 de fevereiro de 2020. O texto é muito claro:

O P R E S I D E N T E D A R E P Ú B L I C A

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

§ 1º As medidas estabelecidas nesta Lei objetivam a proteção da coletividade.

(…)

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas:

I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;

Isso significa que desde o dia 06 de fevereiro de 2020 a vacinação é, por força de lei, obrigatória. Adicionalmente, a Lei nº 13.979 estabeleceu no seu Art. 3º “autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que: a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e b) previstos em ato do Ministério da Saúde.”, liberdade de atuação pelos gestores locais de saúde neste mesmo artigo, e comportilhamento compulsório de dados entre as esferas de poder, conforme Art. 6º.

Para ler o texto completo da Lei nº 13.979, clique na imagem para ampliar.

A análise criteriosa do texto da Lei evidencia diversas ações por parte do Governo Federal que vão contra o que foi promulgado. Para fins deste artigo, vou me reter a um ponto específico: o embate narrativo sobre a vacina obrigatória e como ele está inserido na questão de bem coletivo.

Por que, então, o Governo Federal encampou batalha contra a vacina obrigatória, contradizendo seu próprio projeto de lei?


O governo federal contra a vacina obrigatória

Conforme consulta realizada às 12:04h de 18 de novembro de 2020, o Brasil tinha perdido 166.699 vidas para a Covid-19. Na semana em que se completam 8 meses de um isolamento social que nunca efetivamente foi praticado, as médias móveis de casos e de fatalidades voltam a crescer.

Enquanto isso, diversos laboratórios anunciam avanços em suas pesquisas. A Pfizer divulgou no mesmo dia 18 de novembro que a vacina que desenvolve com a BioNTech teve 95% de eficácia na fase 3, estando pronta para produção em massa. Outros laboratórios estão trabalhando nas suas versões de vacinas. A Universidade de Oxford, em parceria com a Astrazeneca, possui estudos em andamento também na fase 3. Foi baseado nesse estudo que em 6 de agosto de 2020, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma MP liberando crédito de R$ 1,9 bilhão para compra de 100 milhões de doses.

Outra frente, entretanto, avançou a passos largos. O Instituto Butantan, renomado centro de pesquisas científicas ligado ao Governo do Estado de São Paulo, em parceria com o laboratório chinês Sinovac, anunciou em 19 de outubro de 2020 o sucesso da testagem final, prometendo receber 46 milhões de doses, 21 milhões delas até fevereiro de 2021.

Esta data foi um marco que abalou as estruturas do Governo Federal.

Em evento no mesmo dia da divulgação do Instituto Butantan, Bolsonaro reiterou que a vacina obrigatória não seria adotada pelo Governo. Esse discurso se alinha com o histórico dos meses recentes. O período “Bolsonaro paz-e-amor” foi caracterizado por uma série de concessões do Governo Federal ao Centrão e a um Bolsonaro calado. A base mais radical de apoiadores, contudo, se voltava contra o presidente. Munidos de um discurso negacionista, exigiam do presidente postura contundente contra a vacina obrigatória. Bolsonaro, então, cedeu às pressões, com suas falas sendo replicadas pela Secom, ainda no fim de agosto e ganhando corpo com o tempo.

No dia seguinte, 20 de outubro, na reunião do ministro da Saúde Eduardo Pazuello com os líderes das ações contra a pandemia nos governos estaduais. Pazuello, conforme vídeo divulgado pelo Governo de São Paulo, assumiu o compromisso de fazer da CoronaVac a vacina oficial do Brasil, comprometendo a inclui-la no PNI (Programa Nacional de Imunização) e a distribui-la pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

No dia seguinte, 21 de outubro, Jair Bolsonaro veio a público desmentir o ocorrido. Com discurso inflamado nas redes sociais contra o que se habituou a chamar de vacina chinesa, cancelou o compromisso do ministro Pazuello e passou a atuar para travar o desenvolvimento da CoronaVac. No rastro de duas palavras se encontravam não apenas questionamentos infundados quanto à validade da vacina, mas também ataques diretos ao Governador de São Paulo João Dória e à imprensa.

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Em constrangedora live no dia 22 de outubro, Pazuello foi enquadrado pelo presidente. Afastado por estar ele próprio com a Covid-19, Pazuello assimilou bem a ameaça velada do presidente. No vídeo, expôs complacência com a única postura aceita pelo presidente ao afirmar:

É simples assim: um manda, o outro obedece.

Não apenas a compra da CoronaVac foi desautorizada como, dias depois, uma morte de um dos voluntários


Sinofobia ou algo diferente?

O centro do questionamento de Bolsonaro é uma teoria da conspiração amplamente difundida na base radical de apoiadores. Nela, o coronavírus nada mais é que um plano global de dominação chinesa, sendo a vacina, portanto, um próximo passo nesta direção.

Esta retaliação ao que vem da China, por outro lado, não se verifica em outros ambientes do governo. À parte o grave entrevero diplomático de março deste ano, as relações comerciais com o país asiático nunca foram tão fortes. Em 2019 a dependência já era evidente. Segundo dados do Ministério da Economia, os chineses foram destino de 28% do total das exportações brasileiras, contra apenas 13% dos Estados Unidos. Em 2020, essa concentração ficou ainda maior. De janeiro a setembro, as exportações para o país asiático cresceram 6,5 bilhões de dólares, atingindo 53,3 bilhões, um crescimento de 13,9%. Já as exportações para os Estados Unidos despencaram de 22,1 bilhões de dólares para 15,1 bilhões, queda de expressivos 31,7%.

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Como se percebe, a relação comercial com a China apenas se amplia, apesar da fala sinofóbica do governo federal. O que se diz, portanto, é combustível para a milícia radical de apoio do presidente. Por que, então, arriscar esta parceria comercial em nome do discurso? É fundamental se entender alguns quesitos que estão no âmago do governo Bolsonaro.

  • O movimento anti-vacina é teoria da conspiração central do negacionismo radical. Adicionar o elemento chinês da origem do vírus a uma teoria já existente de domínio comunista é fácil do ponto de vista narrativo.
  • O período Bolsonaro paz-e-amor desmobilizou a base e ampliou concessões ao Centrão. Reacender a chama das milícias virtuais bolsonaristas altera o poder de barganha do governo, que se torna, do ponto de vista de percepção pública, mais forte.
  • João Dória se tornou inimigo público número 1 do Governo Federal. Virtual candidato à presidência em 2022, Dória se associou ao nome do presidente em 2018 para se eleger governador. Mas o “BolsoDória” durou apenas a eleição. Assim que ambos assumiram o poder, Dória renegou o presidente. E poucas coisas perturbam mais Jair Bolsonaro que a sensação de ter sido traído. Cobrador de uma fidelidade cega, Bolsonaro não se priva de abandonar aqueles que ousam questioná-los. Discordâncias são entendidas como ofensas pessoais. O Governo atua, logo, para desautorizar e descredibilizar qualquer desenvolvimento por parte do Governo de São Paulo.
  • Estar certo acima de tudo é chave para a manutenção de uma imagem infalível de Bolsonaro perante seus apoiadores. E ele está disposto a ir além do limite do bom senso para se provar correto. O caso da cloroquina é emblemático. A insistência do presidente como último apoiador mundial se faz porque ele não pode se mostrar errado. Além disso, o Governo federal fez uma aposta na vacina de Oxford como a vacina oficial do Governo. Admitir a vacina da Sinovac e do Instituto Butantan seria, sobretudo, uma forma de ter falhado na sua escolha.

Este comportamento personalista ficou ainda mais evidente quando um voluntário da pesquisa paulista faleceu. Em 10 de novembro, Bolsonaro comemorou publicamente a morte ocorrida no dia anterior e a subsequente suspensão da pesquisa pela Anvisa, apenas mais um episódio de desprezo pela vida alheia. A morte, no entanto, não teve qualquer relação com a vacina. Na mensagem que seu perfil compartilhava nas redes sociais, uma frase dá pistas de como funciona a cabeça do presidente: “mais uma que Jair Bolsonaro ganha.” O agir do presidente não se trata, portanto, de olhar pelo bem da população de seu país, mas sim de vencer as disputas com seus adversários, custe o que custar.

vacina obrigatória, Jair Bolsonaro,

A pesquisa do Instituto Butatan em parceria com a Sinovac foi retomada no dia 11 de novembro e já está finalizada para produção em massa. Neste momento, a vacina mais mais distante de ser aprovada para produção é justamente a de Oxford.

O estrago pela postura pública do presidente, entretanto, já estava feito.


A Revolta da Vacina

Em 1904, um evento mudou para sempre a concepção de como programas nacionais de vacinação deveriam ser tratados: a Revolta da Vacina.

A vacinação contra a varíola era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, mas passou a ser produzida em escala industrial somente em 1884. A vacina, algo novo para a maioria da população, gerava medo. E apesar do número crescente de pessoas vacinadas, em 1904 o Rio de Janeiro passou por um grave surto da doença.

Oswaldo Cruz.

O sanitarista Oswaldo Cruz, um dos maiores cientistas da história do Brasil, propôs ao Governo Federal ação que tornasse a vacina obrigatória em duas vias. Na primeira, apenas quem comprovasse ter sido vacinado poderia ter empregos e acesso a serviços públicos, como educação, dentre outras burocracias. Uma outra via era ainda mais severa: entrar na casa das pessoas e obrigá-las a tomar a vacina. A lei foi aprovada em 31 de outubro e regulamentada em 9 de novembro de 1904.

O povo se revoltou. O ultraje de ter sua residência invadida para ser vacinado com um líquido desconhecido foi catalisado pelo momento que a cidade do Rio vivia. Intervenções urbanísticas que afastava os mais pobres do centro, empurrando-os para as favelas.

Ao movimento popular se juntou outro de ordem meramente política, com o intuito de depor o presidente cafeeiro Rodrigues Alves. Conforme explicou o historiador Jaime Benchimol à Fiocruz em 2005:

Uniram-se na oposição monarquistas que se reorganizavam, militares, republicanos mais radicais e operários. Era uma coalizão estranha e explosiva.

Revolta da Vacina, Rio de Janeiro, vacina obrigatória,
Bonde virado pela população na Praça da República durante a revolta.

Entre 10 e 16 de novembro, houve conflitos abertos, incluindo uma rebelião militar. O saldo foi amplamente negativo. A vacina obrigatória foi abandonada. E além de mortos, feridos, deportados e presos, a doença se expandiu com mais força. Continua Benchimol à Fiocruz:

Todos saíram perdendo. Os revoltosos foram castigados pelo governo e pela varíola. A vacinação vinha crescendo e despencou, depois da tentativa de torná-la obrigatória. A ação do governo foi desastrada e desastrosa, porque interrompeu um movimento ascendente de adesão à vacina.

Depois, um programa de conscientização foi implantado. E deu certo. Em 1908, a mais forte onda de varíola da história do Rio de Janeiro pôde ser contida por conta da vasta adesão popular à vacinação.

A lição foi rapidamente aprendida: o caminho para ampliar a adesão à vacinação passa pela conscientização sobre sua importância.


O PNI e a vacina obrigatória

Em 1973 foi criado o PNI, Programa Nacional de Imunização. O programa consistia na organização do calendário de vacinas e numa ampla rede de aplicação por parte de equipes de saúde pública.

O programa se tornou referência mundial em campanhas de vacinação. Prover vacinação dentro do território continental brasileiro e com adesão tão alta era um desafio substancial. Em nenhum momento, entretanto, cogitou-se retomar a via da vacinação obrigatória de 1904. Ana Goretti Kalumi, ex-coordenadora do PNI, relatou ao Blog da Saúde em 2015, o peso da participação da sociedade no programa:

O PNI é um programa que tem uma participação muito grande da sociedade. Sem o comparecimento das pessoas aos postos de vacinação não teríamos o sucesso que temos.

Naquele instante, Kalumi também levantou preocupações com o futuro da imunização no Brasil:

Umas das coisas que nós temos nos preocupado muito é o receio das pessoas quanto à seguridade das vacinas. Como não temos doenças como pólio há mais de 20 anos e profissionais de saúde nunca viram surtos destas doenças, isso faz com que a população não tenha um olhar tão importante para este momento. Com a diminuição dos riscos de transmissão de algumas doenças, as pessoas passam a se preocupar mais com notícias equivocadas do que com a importância da vacinação.

A conscientização da importância da vacinação vinha também com outras vias que se asseguram a obrigatoriedade, ainda que de forma indireta. Desta forma, o único debate possível para a vacina da Covid-19 é se ela será incluída no PNI. E o ministro Pazuello já afirmou que sim.


O que é obrigatoriedade indireta?

Anualmente, todo brasileiro com mais de 18 deve entregar uma declaração de imposto de renda, mesmo que seja isento ou sem renda. Bianualmente, todo brasileiro entre 18 e 70 anos tem que votar nas eleições.

Estas são exigências à população para que seus indivíduos exerçam a sua cidadania. Claro, nem todo mundo vota, assim como nem todo mundo entrega a declaração no prazo. A disseminação da importância dessas ações está na conscientização e nas eventuais consequências pelo descumprimento, como cancelamento de CPF, retenção de passaporte e outros pesadelos burocráticos. Nada impede, portanto, uma pessoa de não fazer algo, nem haverá cobrança ostensiva para tanto. Fazemos, ainda assim, por entendimento de relevância e por estas possíveis dores de cabeça burocráticas, justificando atrasos às instâncias cabíveis.

Logo, temos que o cidadão tem, no primeiro nível, acesso à informação para construção da consciência sobre a necessidade de seu dever; se não cumpri-lo, pode escolher justificar; se não o fizer, poderá arcar com as consequências cabíveis.

Carteira de vacinação.

No que diz respeito à vacinação, crianças, por exemplo, só podem ter acesso à escola com apresentação da carteira de vacinação em dia. Ou então, em caso de viagens internacionais, que a entrada seja negada em virtude da ausência de vacina específica. Tem-se, assim, consequências à não-vacinação que não necessariamente provoca entraves burocráticos, com efeito mais difuso, intangível.

Constituição, constituição cidadã,

Alguns dos deveres de um cidadão brasileiro, de acordo com a Constituição de 1988 são:

  • Escolher os governantes do país;
  • Cumprir todas as leis e a Constituição;
  • Proteger o meio ambiente e todo o patrimônio público e social do Brasil;
  • Respeitar os direitos das outras pessoas;
  • Fazer as contribuições tributárias e previdenciárias devidas;
  • Educar e proteger os seus semelhantes; e
  • Contribuir com as autoridades.

Sob esta óptica, a não-vacinação contribui para se descumprir o dever primordial de “educar e proteger os seus semelhantes”, seja pela matrícula negada a crianças não vacinadas nas redes de ensino, seja pelo risco de contágio de doenças pela não imunização.

Incapaz de se sustentar em argumentos embasados dentro das possibilidades das leis, o movimento anti-vacina se apropria de retóricas tortas, que corroboram um modo de pensar que foge à informação e à ciência.

Abusa, pois, de uma dubiedade semântica contida no próprio texto da Lei Nº 13.979 em seu Art. 3º, inciso III – determinação de realização compulsória de: d) vacinação e outras medidas profiláticas. Na leitura fria da lei aprovada, induz-se que haverá, sim, vacinação compulsória, por mais que se trate muito mais de um regramento mal escrito.

Essa possibilidade de abordagem revive os traumas de uma violenta imposição da vacina num passado distante e abandonado, adicionando cercanias de plano de dominação global, e uma pretensa defesa pela liberdade individual.

Neste último quesito, porém, reside uma pauta que deve ser avaliada com cuidado. Em que ponto a liberdade individual sobrepõe e ameaça o bem coletivo? E como isso interfere no dever de preservação do patrimônio social do Brasil?


Bem coletivo vs liberdade individual

No dia 10 de dezembro de 1948 foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). O documento, do qual o Brasil é signatário, é resultado da contínua evolução civilizatória. Sem valor legal, é um guia de preceitos de respeito à vida e às relações sociais. Composta por 30 artigos e preâmbulo que se complementam, a DUDH afirma questões fundamentais, como o que se lê no Artigo 29º:

Artigo 29°

1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.

2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente e aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

Desde sua publicação, a DUDH foi descumprida inúmeras vezes. Mesmo sem valor legal, foi base para a criação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos aprovados em 1966 e ratificados em 1976.

Tanto a DUDH quanto a Constituição de 1988 possuem mecanismos que barram os levantes que minam a coletividade. Artigos isolados dão brechas, mas devem ser interpretados em seu conjunto, pois outros itens das leis não podem ser desrespeitados no exercício de uma passagem fora de contexto. A remoção de um item apenas, desmorona a estrutura de proteção das pessoas e da democracia.

A saída é alterar a ordem de subordinação. Se a DUDH e a Constituição afirmam que o cidadão está inserido e age de acordo com regramentos sociais, colocando-o como subordinado ao meio, o tratamento deve ser invertido. O meio passa a ser consequência de indivíduos que lutam por garantia de exercício de liberdades individuais disformes, seja com acesso facilitado a porte de armas, seja com a decisão de não vacinar-se nem a si, nem a seus filhos.

Argumentam, pois, que teriam tolhida sua liberdade de escolha, num inaceitável cerceamento de direitos dentro de uma democracia. E sacam do coldre uma premissa que é válida, a depender da autonomia e incentivos de quem define as leis: o que exatamente é bem coletivo? E que espécie de sociedade se constrói nesses moldes, senão uma incompleta?


Zona cinzenta: quem define o que é bem coletivo?

A definição de bem coletivo se aproxima mais do que afronta os direitos garantidos pela Constituição, como liberdade de imprensa e de expressão, acesso à saúde e educação, inclusão de todos em condição de igualdade pela impossibilidade de discriminação de qualquer espécie, como religiosa, raça, cor e orientação sexual, dentre outras.

Para isso, a Constituição estabeleceu instrumentos que validam o Artº 3, inciso IV, que circunscrita dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos“. Por isso, por exemplo, o estado deve ser laico.

Ainda assim, o “bem de todos” é algo vago e que apela a construções autoevidentes de sociedades organizadas. O conjunto de leis de uma nação é espelho da moral de sua gente. E direitos fundamentais da população são palavras em papel, que podem ser alteradas – mesmo as cláusulas pétreas.

Quando um cidadão se dispõe a atuar, enquanto presidente que jurou obedecer a Constituição, em promover uma interpretação cristã das leis, agride-se a igualdade de tratamento das pessoas. Quando se promete a nomeação de um novo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) terrivelmente evangélico, o que se implica senão uma reinterpretação das leis de acordo não com os preceitos da Constituição cidadã, mas de acordo com os ritos de comportamento de religião específica?

Nesta linha, a depender do tecido social tido como novo normal numa sociedade prioritariamente cristã, em que as minorias se dobram à maioria ou simplesmente desaparecem, o que seria um bem coletivo? Se exibições públicas de afeto em relações homoafetivas fossem, como tentam empurrar, um atentado ao bem público, e se assim a população quisesse, a homofobia não deixaria de ser crime e passaria algo a ser exaltado?

E se é dever do cidadão proteger o patrimônio social do Brasil, e os radicais defendem normatividades baseadas em dogmas religiosos que restringem justamente as liberdades individuais que dizem querer assegurar, definindo o Brasil como país conservador, não estariam eles, então, ao promover a inquisição, justamente atendendo aos anseios da Constituição de 1988, sendo este, pois, o patrimônio social a ser protegido? E se o indivíduo está subordinado ao meio, ter uma sociedade libertina não seria justamente um meio de enfraquecer as liberdades da maioria, que seria, então, forçada a subjugar-se?

Audrey Azoulay.

A definição de bem coletivo, portanto, somente pode ser avaliado dentro de uma estrutura completa de contrapesos que preserve os Direitos Humanos. Audrey Azoulay, Diretora-Geral da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) alertou para “a proliferação do populismo e do extremismo, que constituem um obstáculo aos ideais de paz e direitos universais”, e que exploram justamente as brechas e dubiedades das leis de cada país. É um atestado de como a batalha pelos Direitos Humanos é constante:

A paz será imperfeita e frágil, a menos que todos se beneficiem dela. Os direitos humanos são universais ou não são.


Há debate sobre vacina obrigatória?

Não há debate sobre a vacina obrigatória. O Brasil, com o PNI, é referência mundial em programa de vacinação. Isto já faz das vacinas listadas no programa obrigatórias. Ter a vacina ou não contra a Covid-19 no PNI, portanto, é a única avaliação a ser feita. Tudo além disso atende a outros interesses.

Quando se constrói o teatro de horrores que se tornou o debate sobre a vacina no Brasil, percebe-se que há meramente politização do assunto. Aproveita-se de um texto mal escrito da Lei Nº 13.979, despertando teorias da conspiração de um grupo de apoio que se caracteriza pelo radicalismo e pela nagação da ciência.

A vacinação compulsória é em si impossível, seja pela ausência de força de imposição domiciliar ostensiva, seja pela inconstitucionalidade que essa ação representaria -o lar é inviolável-, seja pelo aprendizado de 1904 que sepultou essa alternativa para nunca mais ser aventada.

O que está em jogo é um intrincado controle de soberania narrativa, que expele a informação e cria uma distopia factual. E bate-volta de declarações da vacina obrigatória equivale, em valor semântico, às acusações de fraude nas eleições.

De certa forma, é como se revíssemos o levante militar de 1904, ao cabo da revolta popular instaurada. Relembremos a frase do historiador Jaime Benchimol à Fiocruz: “Uniram-se na oposição monarquistas que se reorganizavam, militares, republicanos mais radicais e operários. Era uma coalizão estranha e explosiva.”

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O então deputado federal Jair Bolsonaro fala na Câmara. Foto: Mauro Pimentel / AFP

A imagem da Secom com a frase de Bolsonaro sobre como a vacina não seria obrigatória, é emblemática e corrobora essa percepção. Nela, vê-se um apoiador do presidente abraçado a uma bandeira do Brasil monárquico.

A diferença é que esses reacionários revoltosos, expoentes da extrema-direita dos novos tempos que formam uma coalizão inegavelmente estranha e explosiva, agora são, efetivamente, os donos do poder. E têm a oportunidade de contorcer as leis para sedimentar a ânsia autoritária e teocrática que vê a democracia como impeditivo ao seu modelo ideal de governo e de organização social.

A temática da vacina obrigatória serve tão somente para a promoção de um líder inquestionável, que incita o medo fabricando inimigos -quanto mais difuso este inimigo, melhor- e implode as instituições de contrapeso por dentro.

Estava certa Audrey Azoulay: a paz é fragilíssima.

Gabriel Galo é escritor, administrador e empresário. É colunista do Correio da Bahia, do Futebol S/A e do Arena Rubro-Negra, editor do papodegalo.com.br e já passou pelo Huffpost Brasil. É autor de “Futebol é uma Matrioska de surpresas” (2018), “A inescapável breguice do amor” (2020) e “Não aperte minha mente” (2020). Escreve todas as quintas-feiras no Aprendizagem Jurídica.


Leia mais sobre a origem do coronavírus em reportagem especial do Papo de Galo


Leituras recomendadas

A Revolta da Vacina, Nicolau Sevcenko.

Constituição do Brasil (1988).

História das Epidemias, de Stefan Cunha Ujvari.


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Artigo sobre o que está contido no debate sobre a vacina obrigatória foi públicado em parceria com o Aprendizagem Jurídica. Link AQUI!


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