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A virtude do inútil

A virtude do inútil

Poeta Manoel de Barros sorri.

Abrir um livro de Manoel de Barros é atrair uma revoada de passarinhos, que vão se acostar tranquilos em minha janela, observando-me, de bico em sorriso. Desfaço-me como gente e me refaço como passarinho, voando com eles para onde quer que a imaginação me leve.

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“A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso, para mim, não é aquele que descobre ouro.
Para mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”

Manoel de Barros, em “Tratado geral das grandezas do ínfimo”

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Eu não descobri Manoel de Barros. Eu fui quase que obrigado e tropeçar em Manoel de Barros. Passados 11 dias de seu aniversário em 2013, escreveu-me meu pai:

“Querido,

Resolvi lhe dar três presentes. Pelos motivos que você verá ao ver o documentário e ler os dois livros, são presentes absolutamente inúteis, imprestáveis, inservíveis.

Se, contudo, suavizar um bocadinho a sua rotina e atrair alguns passarinhos para perto da sua janela, terá valido a pena entregar algum tempo para a contemplação dessas inutilezas todas.

Beijos, boa semana, beijos aos nossos”

A primeira vez que ouvi seu nome foi também com meu pai, uns anos antes, que me perguntou como quem não quer nada, se eu já tinha lido Manoel de Barros. Meu não soou quase como uma ofensa. Prometi buscar, não o fiz, e ele mesmo se encarregou de relembrar o tópico quando do e-mail acima.

Assisti ao documentário no mesmo dia, com link que ele proveu, e me encantei automaticamente com o mato-grossense de fala mansa e olhos escuros cheios de azul. Ontem, pela não-sei-qualésima vez, revi este mesmo documentário.

Manoel de Barros é desses poetas geniais que nasce a cada mil anos, fruto de uma brincadeira de criança do destino.

Diz ele no documentário que não sabe fazer outra coisa a não ser poesia. Que trabalhou para que a fazenda herdada de seu pai desse lucro para que ele pudesse ficar sem fazer nada o tempo inteiro. Dizia ser um “vagabundo profissional”. Equiparava escrever poesia a carregar água na peneira, a roubar vento:

“A mãe falou: meu filho, você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.”

Afirmava que a poesia não era algo para ser explicado, mas para ser sentido. Sua poesia não respeitava métrica ou rima. Sua poesia, simplesmente, era. Quem lê poesia tentando identificar versetos, sonetos, quartetos, redondilhas e afins, a lê querendo provar conhecimento. Ler poesia é desromper-se do que amarra a norma. Fazer poesia, então, requer o tempo amarrado no poste.

“O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!“

Inventava palavras e retratava o Pantanal com seu olhar de criança. Nunca deixou ser uma, gostava de dizer. O mundo é mais belo pela óptica de uma criança, livre de termos quadrados que limitam a imaginação.

“O rio que fazia uma volta
atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole…

Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz…
se chama enseada…

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.”

Manoel descrevia a vida sem linhas retas, mas com imagens que brotam em nossa cabeça. “A manhã abria as pernas para o sol”. Você vê a imagem melhor que a mais completa transcrição.

Brincava que 90% do que escrevia era invenção e só 10% era mentira.

Recluso, passava os dias em seu escritório a fazer poesia, ou “lugar de ser inútil”. Disse ele que “a poesia é a virtude do inútil”. É o belo elevado às últimas consequências.

“Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira
(…)
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.”

A beleza de sua simplicidade evoca o que existe de mais puro em quem o lê.

“Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
Para gostar de passarinho.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior que o mundo.”

Via-se como artista, sempre soube sê-lo. Era mestre em dar-se menos relevância do que os outros lhe impingiam, mas se orgulhava de ser o poeta que mais vendia livros no Brasil.

“A maior riqueza
Do homem
É sua incompletude.
Nesse ponto,
Sou abastado.”

Fico ziguezagueando continuamente em sua obra. Indo e vindo para achar uma pequena fortuna de palavras que passaram despercebidas aqui e acolá. Vejo-o em Guimarães Rosa, companheiro de novo idioma. Vejo-o em Mário Quintana, quando este escreveu:

“Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”

Volto à mensagem de meu pai e percebo que abrir um livro de Manoel de Barros é atrair uma revoada de passarinhos, que vão se acostar tranquilos em minha janela, observando-me, de bico em sorriso. Desfaço-me como gente e me refaço como passarinho, voando com eles para onde quer que a imaginação me leve. Mais do que a contemplação das inutilezas às quais meu pai se referia, vejo-me como uma inutileza. Somente quem perante o passarinho não se hierarquiza pode falar sua língua. Vejo que do lugar onde estou já fui embora. Transvi em transe minha existência.

“O olho vê,
A lembrança revê
A imaginação transvê

É preciso transver o mundo”

Acorde-me quando a cobra de vidro que faz uma volta atrás de casa não for mais uma enseada.

***

Crônica publicada na Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021, páginas 42 a 45.


Capa da Papo de Galo_ revista #15, de 16 de abril de 2021.

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