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O casal anti-Copa e a volta pra casa

Os dias que antecederam a sexta-feira para o aguardado Brasil x Bélgica foram de expectativa e excitação para Jamile e Benício, o casal anti-Copa. Não poderia haver adversário melhor para que a seleção voltasse para casa com o rabo entre as pernas e que o país pudesse, finalmente, voltar ao seu normal. “Vai ser um dia maravilhoso!”, diziam, ansiosos.

Tudo o que envolve a Bélgica apetece a Jamile e Benício, o casal anti-Copa, e aos seus fiéis amigos. O país é uma Monarquia Parlamentarista, “quer mais luxo que vir de um país que tem Rei? O Filipe que importa de verdade é o ‘nosso’ Rei da Bélgica, não estes dois brasileiros aí!”, diziam, naturalizados. “Povo lá fala pelo menos quatro línguas, inclusive o flamengo, que não é o do Rio, viu? Não vai confundir!” contam, rindo bastante. “E um IDH, né?, que é dos maiores do mundo! Pra eles, sim, dá pra torcer!”

Como de praxe, prepararam grande festa. Era tão grande a confiança nos Diabos Vermelhos que convidaram inclusive aqueles um dia esquecidos. Podia criança, podia o Carlão – que nem respondeu ao RSVP, mal-educado –, podia de tudo. Sextou! Partiu, fim-de-semana, partiu, feriadão, partiu, aeroporto!

O pedido para chegarem um pouco antes do que normalmente se fazia foi atendido pelos pontuais camaradas. Nem bem o relógio apontava as 13 horas, estavam todos lá.

Em movimento ousado, Jamile e Benício foram além da decoração costumeira do apartamento com varanda gourmet e cozinha americana financiado a perder de vista. Haveria de ser mais, de se fazer mais.

Pois num canto da sala, ao lado da TV, criaram o que chamara de ‘espaço vermelho’. Audaciosos, pintaram a parede predominantemente de vermelho, com detalhes em preto e amarelo na vertical. No meio colaram um adesivo enorme com o emblema da Federação Belga de Futebol. Via-se também um #BelgiqueDiabolique acima, em altura minuciosamente calculada para aparecer em fotos a seres publicadas. Também faziam questão de indicar ser obrigatório em todos os posts e stories dali para frente usar a hashtag. Para auxiliar, montaram câmera poderosa em tripé para garantir a qualidade da filmagem. Um MacBook, trazido de Orlando sem pagar imposto, “senão não compensa, não é mesmo?” estava a postos para editar vídeos, caso alguém precisasse.

O cardápio montado pelos anfitriões incluía um buffet de diferentes tipos de batatas-fritas, prato alegadamente belga. Acompanhavam crepes, barras de chocolates belgas e belgium waffles, assim em inglês mesmo, para dar mais destaque e um toque sofisticado. Tudo feito na hora por um catering contratado exclusivamente para a ocasião.

Os convidados chegavam e recebiam uma sacolinha de boas-vindas. A começar pelo mimo mais importante: uma camiseta oficial da seleção da Bélgica. Todas com o número 10 às costas e com o nome de cada visitante. Rapidamente envergavam o manto com orgulho! Eram belgas de coração e vestiam a camisa, como não! Havia mais: peruca do Fellaini; faixa tricolor nas cores da bandeira da nação europeia; uma tiara vermelha com duas orelhas de diabinho, que a maior parte educadamente se recusou a usar; um pequeno kit de pintura de rosto; as mulheres tinham ainda a opção de esmalte colorido para as unhas.

O clima era ameno. A ausência de Maurício e Renata Patrícia foi sentida. Seria aquela a oportunidade para a reconciliação, contanto que o casal excluído admitisse sua culpa e cortasse relações em definitivo com o Carlão, o deselegante. Pensando bem, concluíram depois, podia ser que eles se recusassem a ajoelhar-se no milho da culpa apontada por eles, gerando desconforto desnecessário.

Pois que Jamile e Benício, o casal anti-Copa, ao se certificarem de que todos os confirmados estavam presentes, tomaram a palavra. “Vamos ensaiar algumas músicas para o nosso jogo de daqui a pouco.” Distribuíram um panfletinho frente e verso. Na frente, lia-se a letra para ser cantada no ritmo da música que virou hit da Copa – com direito a liberdade fonética:

“Ô! Oitenta e dois, três do Paolô
Oitenta e seis, o Zico errou
Nove-zero, Caniggia, gol
Dali a oito, Allez, les bleus!

Ô! Dois mil e seis o Robertô
Dois mil e dez, Melo melou
E em catorze, o apagão
Vexame em pleno Mineirão.

Ô! Hoje o Brasil vai perder! (4x)”

No verso, a paródia para Bella Ciao, também hit em várias línguas em solo russo:

“E o Marcelo,
E o Coutinho
E o Neymar cai! Neymar cai! Neymar cai, cai, cai!
E o Brasil já está chorando,
Agora vamos trabalhar!”

Bastaram poucas repetições para que as canções estivessem na ponta da língua, cantadas a plenos pulmões, sem erro ou falha. Cantavam e de vez em quando ouviam um xingamento que invadia a varanda do apartamento, prontamente ignorada e rebatida apenas internamente, “Não liguem para estes alienados. Perdoai, eles não sabem o que fazem!”

O jogo começou e o Brasil logo sapecou uma bola na trave belga. O grupo sorriu preocupado, mas logo rebateu com incentivos ao zagueiro da seleção brasileira. “Não vai chorar, não?” Gargalhada geral. Que virou completo festejo descontrolado quando um gol contra traiu Alisson e fez Bélgica 1 a 0. Que alegria! Eles se abraçavam, emocionados. Uns choravam. “Finalmente essa balela de Copa vai acabar e poderemos todos voltar às nossas vidas normais! Pelo bem do Brasil!

Quase vinte minutos depois, o ruivo branco-como-o-leite Kevin De Bruyne, num chutaço em contra-ataque mortal, abriu 2 a 0. Era verdade demais, era possível! Avante, Bélgica!

O time brasileiro se perdeu. Errava tudo. Estava arrasado psicologicamente.

O intervalo chegou com a confraternização no balcão regado a cervejinhas lager top-topíssimas belgas. “E a Bélgica ainda tem a melhor cerveja do mundo!” Brindaram, exultantes, esquecendo o sofrimento da aguada cerveja mexicana da rodada anterior.

Para o segundo tempo, a seleção brasileira voltava com Douglas Costa no lugar de Willian. Um pufe de ar varreu a sala, num misto de preocupação com esperança resiliente. Buscaram, pois, mais uma breja trincando, para não perderem o foco. O sabor belga-tropicalizado da quase-puro-malte de receita estrangeira haveria de manter o querer da derrota canarinho-pistola.

O Brasil foi pra cima. A Bélgica recuou, se defendia como podia. Neymar mal, mas sem cair. Num lance, pediram pênalti no craque-que-cai brasileiro, mas ele próprio falou para seguir o jogo. Algo de muito estranho acontecia. Philippe Coutinho, que não é o Rei, canelava. Jesus saiu, Firmino entrou. Renato Augusto foi a campo, no lugar de Paulinho.

O Brasil insistia, martelava. E nada. Os amigos já não comemoravam cada roubada belga, cada ataque interrompido. Seria a tensão? Ou seria o desmantelo pelo fim das confraternizações em Copa do Mundo? Num pensamento que somente o botão de cada um sabia, assentiam que “até que se o Brasil passasse não seria má ideia…”

De repente, nos mais de 30 minutos corridos, cruzamento, Renato Augusto sobe de cabeça. Ele testa bonito, batendo o gigantesco goleiro belga Courtois, descontando para o Brasil. O pessoal do catering comemora, vibra. Vendo a inércia dos patrões, eles logo se recompõem à postura profissional adequada. Jamile e Benício, o casal anti-Copa, olha de canto de olho para os contratados em reprovação. Levantam-se sorrateiros, para chamá-los de canto e pedindo retidão.

Retornam para seus assentos, preocupados. Era pressão demais do Brasil. Na sala, ninguém mais sorri, ninguém mais vibra. Unhas são roídas, cabeças são coçadas, pernas tremulam nervosas.

De repente novamente, Renato Augusto sai de cara pro gol. Era o empate. Ele domina, ajeita, chuta e… a bola vai para fora. O pessoal do serviço, já esquecido das atribuições recém-lembradas, enlouquecem. UH! O grito é acompanhado por pelo menos metade de todos os presentes. UH! Jamile e Benício não acreditam. Em ato um tanto desesperado, puxam o canto ensaiado com afinco antes, para pararem no silêncio de todos, que não davam bola alguma para eles.

Outro ataque brasileiro. A bola é rolada para dentro da área, vinda do lado esquerdo. Mansa, pronta e receptiva, aguarda o arremate final de Philippe Coutinho que, se fizesse, seria coroado Rei ali mesmo. Ah, ia! Mas o pequeno Couto pega errado e a pelota viaja longe… Pois desta vez, não foi metade, mas sim o grupo inteiro que gritou decepcionado. UH! Jamile, indignada, jura ter visto Benício vibrar também em torcida pelo Brasil. Ele nega peremptoriamente. “Claro que não, amor. Coisa da sua cabeça.”

Não deu mesmo tempo para o empate. O juiz encerra o jogo. Brasil eliminado. Jamile põe-se de pé puxando Benício pelo braço. Eles pulam, comemoram, xingam na janela, “Agora é que o Brasil vai pra frente!” Mas o que era para ser o clímax da festa, o êxtase final, a vitória, enfim!, era descontentamento e indiferença.

Os companheiros tecem papos estranhos.

– Agora vou ter que cancelar o pacote que paguei pro fim-de-semana contando com a terça-feira…
– Pois é! Eu já tinha combinado com a chefia que eu voltaria só na quarta-feira de cinzas, depois do meio-dia!
– E o meu bolão, então? Lascou-se todo!

E todos concordaram que os bolões estavam seriamente comprometidos.

Despediram-se deixando para trás a peruca do Fellaini, que um dos visitantes jurou ser a mesma do David Luiz de 2014. Abandonaram o restante do kit, exceto a camiseta belga que era realmente bem bonita. Acenaram de longe para Jamile e Benício, o casal anti-Copa, sem procurar muita intimidade.

Na saída macambúzia de todos, olharam-se os dois com olhos de missão cumprida.

– Foi difícil, mas conseguimos!
– Sim! Foi com a nossa força, com certeza. Sem a gente nada disso teria acontecido.
– Mal sabe essa gente que a capivara do hexa não era nada comparada à nossa vontade!

Riram bastante. A pergunta a seguir veio como uma bomba na sala.

– E agora?

Estavam tais quais cachorros correndo atrás de carro em movimento, que latem histericamente, mas sem saber o que fazer quando o carro para. Pois o carro parou. Eles emudeceram. Até que um propôs.

– Vê o que tá acontecendo aí de novidade.
– Deixa eu abrir aqui o portal da internet…
– Estão chegando eleições, né?
– É, mas ainda é muito pra frente. A gente precisa de algo pra agora.
– Pra já! Pelo país!
– Aliás, te contei que essa semana vieram me pedir dinheiro?
– Como assim?
– Pois é. Vieram com um papinho de construir um hospital na comunidade aqui do lado, sabe? Pois a mim não enganam, não! Meu dinheiro eu não torro com essas malandragens.
– Quem foi que pediu?
– Ah, uma ONG qualquer aí, que só porque tem um monte de artista apoiando acha que tem credibilidade.
– Que absurdo! Aposto que é daquela emissorazinha de TV e sua laia ignara!
– Não é? Querem me fazer de trouxa, mas comigo não, violão! E outra: que papo é esse de dar dinheiro? O povo quer facilidade demais. Tem que ensinar a pescar!

A frase enternece a militância. No púlpito da elevação moral, erguido com drones sobrevoando os reles mortais alienados, estão sobre o mundo. E profundamente enamorados, enfeitiçados um pelo outro.

– Você fala com tanta paixão sobre essas coisas. Eu te amo cada vez mais.
– É porque nós somos acordados. Não somos levados pela massa. Somos a salvação deste país!
– E você fica tão bem de vermelho… Me beija!
– Beijo, mas com moderação, por favor. Um beijo-família. Língua só depois das dez da noite.

Crônica publicada em série especial no HuffPost Brasil. Link AQUI!

Episódio 1: Jamile e Benício, o casal anti-Copa

Episódio 2: O casal anti-Copa abalado

Episódio 3: O casal anti-Copa e o cair pra cima

Episódio 4: O casal anti-Copa e o arriba, México

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